domingo, 21 de julho de 2024

FUMO-TE

Liliana Ferreira
CRU - corpo (im)perfeito https://www.instagram.com/cru_ocorpoimperfeito/



Quem sou?

Estava mesmo à tua espera. Ainda esta manhã engoli um café à pressa para não perder tempo em viagens inúteis.

Somos os únicos habitantes dos nossos próprios corpos? 

Comprei todos os bilhetes para Las Vegas. Após a nossa chegada, todas as portas serão automaticamente fechadas. Teremos uma cidade inteira por nossa conta. 

Quem me habita?

Ninguém quer partir os braços. Ninguém quer acordar dentro de um avião sem marcha atrás. Ninguém quer ficar sem fôlego enquanto corta as unhas.

Posso pedir um favor?

Não. Concedo-te apenas três posições: vertical, horizontal e escondida.

Já cresci muito além da minha própria vontade.

Falo muito.

Muito, quanto?

Calculando por alto, falo vinte mil músculos por segundos. 

Todos os habitantes de Londres foram criados à nossa imagem e semelhança.

Sabes a que horas exatas podemos fugir destes corpos?

Calculando pela velocidade do vento, que hoje é de noroeste, falta pouco.

Pouco, quanto?

Já comecei a tossir nuvens altas, repara, dás-me volta à cabeça. Quero ficar só! Preciso estar só!

Fumas-me?

Sempre, sem arrependimento, as minhas mãos gritam por ti... 


segunda-feira, 8 de julho de 2024

O RESPIRAR DAS PEDRAS


Tem negócios antigos, a morte

Nua e crua

Entra-nos pelo umbigo

Uma gota por dia

Ou talvez esteja escondida

No rodapé velho do corpo

De onde os barcos são os primeiros a fugir 

Ou a deixar para trás todas as pedras:

Elas que respirem!


Sufocamos com a subidas das marés


segunda-feira, 20 de maio de 2024

IDIOMAS CLANDESTINOS


Não ouço o que pensa a minha cabeça

Tenho uma surdez afinada pelo toque dos dedos

E toco no escuro pendurada pelas patas 

Como os morcegos e as cabras cegas 

Lanço ecos que se repercutem

Lá para o fundo dos meus olhos apagados


Os mosquitos por cordas devolvem-me algum sangue

Um RH de uma linhagem mais azul do que positivo

Sei que só os barcos têm lastro suficiente

Para não tombarem dentro do peito dos céus


Se um sol em contramão 

Abalroar a proa alta da minha renúncia

Outra serei eu, a que só se ouve por dentro

Sem atlas  

Sem corpo

Sem artilharia pensada


Mato o peso ocioso das palavras 

Queimo-as em labaredas altas

Em linhas de fogo e atrevimento


domingo, 14 de abril de 2024

DENÚNCIA ANÓNIMA

Quando as facas beijam o nó do pensamento 

Há dores que espirram e bocejam pelo nariz

Apontando a torto e a direito

Para todos os actos de amor

Perpetrados contra um tipo de solidão ilícita 

Contra os malmequeres de biqueira de aço

Contra as nuvens que se vendem a preço da chuva

Há dores agudas como gritos de morcegos

Amor cego que se ouve à distância

E se vai afastando sempre lentamente

Porque é mais leve morrer do que calar


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A DOENÇA DAS PONTES TORTAS

Quando penso fico às escuras


Nem as mesinhas de cabeceira

Funcionam como antes

Já não há pulsos a vapor

Todas as horas vêm da China

Com árvores para pendurar ao pescoço

E com genuínas pedras de plástico do antigo Egipto

  

Pertenço à idade dos erros

Por isso ferro os dentes

Enquanto continuo a não morder

O engodo que me engorda 


E olho para o caminho que parou

Ali mesmo à minha frente

Só para não me deixar passar

domingo, 14 de janeiro de 2024

OBSTÁCULO MEDITATIVO

Um gato rouba o meu pensamento

E foge com ele na boca.

Atiro-lhe pedras, mas ele não pára

Assusta-se e salta por cima do muro.


E agora? Penso eu sem pensamento…


domingo, 10 de dezembro de 2023

A NOITE DE TODOS OS MEDOS


No âmago do que é humano

Cravou-se o punhal mais tresloucado 

Malditas as trevas das nossas mãos  

Do viver nosso que a cada dia se desfaz


Desanda para trás a roda da história 

O tempo futuro foge-nos dos pés

Estamos agrilhoados até à alma

Somos escravos outra vez subjugados 

Arrastamos pesados medos e ódios 

 

Olho por olho no ranger dos dentes 


Só ficamos a salvo sempre que viramos costas

Quando nos escondemos no escuro

Das sombras que mais nos envergonham


A gorda matança dos inocentes 

Ah como nos repugna tanto 

À hora de engolir para adormecer


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

SOU MUITO SUPERFICIAL

no fundo da Lua 

encontro um poço

no fundo do poço

escavo um buraco

no fundo do buraco

escondo um barco 

que suavemente se vai afundando 

na forte rebentação do olhar


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O deslizar do ”Rio Sem Margens”

Levanta-te, ó Pátria minha!


 "Sob as palavras de pedra,

num genocídio de ideias rombas,

chagas no verde e vermelho abertas,

morreu o tempo da verdade comprovada.

É a Idade das Nuvens, premeditada,

martelando no engano das sombras,

que distorce a luz e nos derrota

por maltratados ouvidos e olhos.

A vozearia falida, comungada

por todas as línguas confusas,

qual pedra estéril de gente sem estrela,

ilumina o pior e escurece a vontade.

Levanta-te, ó Pátria minha!

Mais alto que o choro de pedra

e que a nuvem teimosa em ficar,

há um céu de integridade à tua espera."


© Jaime Portela, Janeiro de 2022

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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A SUAVE LEVITAÇÃO DAS PEDRAS


Vou abrir o céu para que as flores possam cair

Vou semear rios largos onde os sonhos naveguem

Vou agasalhar o silêncio com a minha voz

Para que o vento nunca se separe do pássaro


Pois que todo o corpo é leve

E o poema flutua além das coisas que são vazias