quinta-feira, 26 de outubro de 2017

HISTÓRIAS CALADAS

Mil frutos sem sentido


Piet Mondrian


O cheiro a maresia mistura-se na boca com a doçura sumarenta dos gomos da laranja.

Tanto mar à minha frente e nem tenho onde lavar as mãos. Descer a íngreme falésia é impossível. Nem para apanhar percebes, quanto mais. Mas também sei bem que há sempre alguém que se arrisque até às sete partidas do mundo.

A partir das sete da tarde o sol começa a molhar os pés, vai ficando ruborizado até às orelhas e finalmente afogar os últimos fôlegos de luz. Sempre que posso não perco pitada daquele diáfano adormecer.

Neste momento sou uma ilha rodeada de dúvidas por todos os lados. Não sei em quantas braçadas alcançaria uma estrela firme no céu. Não sei qual o sabor apagado dos meus ramos, das minhas folhas, dos meus frutos.


A laranja roída de inveja já não existe. Só os restos das cascas já secas permanecem nas minhas mãos. Ao longe, uma canção faz nascer um novo lugar, um novo mundo. As luzes das casas acendem-se. Primeiro uma, depois as outras. É hora de naufragar.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

HISTÓRIAS CALADAS

À flor da pele

Ninguém quer vestir a minha pele por dois ou três dias? Asseguro-vos que até é coisa bem simples, faço isso desde que nasci e não me queixo, acreditem. Se quero tirar uma folga, é apenas porque precisava de cortar alguns vínculos já demasiado enraizados a mim. O velho sentimento de inutilidade é um deles. Está desobediente desde a semana passada. Diz que se nega a ser uma pedra no meu sapato. Explico-lhe que nunca o foi, que não passa de um macaquinho no sótão, mas ele não acredita, deve andar com a pulga atrás da orelha. Exige ter um novo estatuto, do mesmo modo como apela a que eu mude de convicções.

Desde muito cedo, ainda criança, espantei todos os fantasmas e bichos papões que existiam escondidos debaixo da cama e atrás das portas. No Verão, com as janelas do quatro abertas, o piar das corujas era tão ameno quanto a claridade da lua cheia. Nem mil mosquitos por corda me fariam cismar nas minhas cismas. Se agora cismo é porque já tenho a pele demasiado apertada nos punhos e tornozelos. Seis milímetros de folga faziam-me bem. Poderia respirar fundo e descansar de mim. Todos os outros macaquinhos do meu sótão, também ficariam nas sete quintas, mortinhos para me verem pelas costas. Conheço-os de cor e salteado, garanto que apesar de não se notarem à vista desarmada, até têm boa pinta. Não lhes dou é confiança, isso não, mantenho o meu subconsciente sempre limpinho como se fosse um salão de baile.

Às vezes fecho os olhos para não falar. Já me cansa o ter de respirar fundo, a vida é capaz de ser tão incómoda quanto a prisão de vente. Às vezes, choco comigo de frente, pele na pele, olhos nos olhos, espelho limpo, sem corantes nem conservantes. Poderia dizer que tenho umas telhas, mas que com algum jeito, até dão jeito. Poderia avisar que sou superficial como os nenúfares.

Mas opto por ficar. Vou é à vida antes que se faça tarde.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

HISTÓRIAS CALADAS

Distâncias perdidas


Quantas vezes a avó da minha avó terá ido ao Brasil num barco à vela? Tantas são as viagens que se prolongam através das tempestades, dos ventos em alto mar. Três meses de oceano sem fim, para lá do fim do mundo. Regressava de cada viagem com um filho no ventre. Imagino os enjoos, os cansaços lançados borda fora, os mortos rezados no escuro das íntimas ladainhas.

Os homens foram para a Lua, para o céu ou para o inferno consoante os seus jogos de estratégia. Todo o ouro do Brasil foi insuficiente, os homens perderam-se com as mulatas, ficaram desnorteados das ideias. Nem todo o ouro do Brasil foi esbanjando, a avó da minha avó terá tido o marido de volta, não sei bem, mas a casa construída possivelmente no século XVIII, ainda se mantém de pé, sem tremer nem abanar.

A minha avó perdeu a mãe muito cedo, ajudou a criar os oitos irmãos, herdou a máquina de costura, alguns terrenos e metade da casa. Metade que é e sempre foi uma casa inteira. A minha avó todos os anos assinalava o dia e a hora exacta da chegada das andorinhas. Os ninhos mantinham-se intactos, agarrados às vigas do cabanal. Entravam pelo lado dos ventos, saiam por cima do portão. Asas à solta num tempo em que a casa ainda era aberta, em que a vizinhança tinha permissão de ir ao poço abastece-se de água.

Tanto frio, tanta chuva. Depois a Primavera trazia as andorinhas e a minha avó sentava-se com os pés ao sol. Nasceu e morreu na mesma casa, em toda a sua longa vida nunca teve outro lar. Nunca teve necessidade de viajar para além do mar sem fim.

Foi grande o seu mundo.