À flor da pele
Ninguém quer vestir a minha pele por dois ou três dias? Asseguro-vos
que até é coisa bem simples, faço isso desde que nasci e não me queixo,
acreditem. Se quero tirar uma folga, é apenas porque precisava de cortar alguns
vínculos já demasiado enraizados a mim. O velho sentimento de inutilidade é um
deles. Está desobediente desde a semana passada. Diz que se nega a ser uma
pedra no meu sapato. Explico-lhe que nunca o foi, que não passa de um macaquinho
no sótão, mas ele não acredita, deve andar com a pulga atrás da orelha. Exige
ter um novo estatuto, do mesmo modo como apela a que eu mude de convicções.
Desde muito cedo, ainda criança, espantei todos os fantasmas
e bichos papões que existiam escondidos debaixo da cama e atrás das portas. No
Verão, com as janelas do quatro abertas, o piar das corujas era tão ameno
quanto a claridade da lua cheia. Nem mil mosquitos por corda me fariam cismar
nas minhas cismas. Se agora cismo é porque já tenho a pele demasiado apertada nos
punhos e tornozelos. Seis milímetros de folga faziam-me bem. Poderia respirar fundo
e descansar de mim. Todos os outros macaquinhos do meu sótão, também ficariam
nas sete quintas, mortinhos para me verem pelas costas. Conheço-os de cor e
salteado, garanto que apesar de não se notarem à vista desarmada, até têm boa
pinta. Não lhes dou é confiança, isso não, mantenho o meu subconsciente sempre limpinho
como se fosse um salão de baile.
Às vezes fecho os olhos para não falar. Já me cansa o ter de
respirar fundo, a vida é capaz de ser tão incómoda quanto a prisão de vente. Às
vezes, choco comigo de frente, pele na pele, olhos nos olhos, espelho limpo,
sem corantes nem conservantes. Poderia dizer que tenho umas telhas, mas que com
algum jeito, até dão jeito. Poderia avisar que sou superficial como os
nenúfares.
Mas opto por ficar. Vou é à vida antes que se faça tarde.
1 comentário:
excelente.
estás como o vinho do porto :)
a.
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