De bicicleta até ao céu
Havia as três irmãs, é verdade. Ainda assim, dos rapazes, cinco
foi a conta que Deus fez, e que a morte de um, ainda jovem, ainda com um filho por
criar, reduziu para quatro. Depois, cada um no seu ofício, os irmãos Cardoso
tiveram vidas e saberes prolongados. Genuína foi a amizade que sempre os uniu.
Habitantes dos dias puros, de quando o toque das trindades abria
e fechava as horas de trabalho com um Pai Nosso rezado em silêncio. De quando o Inverno se prolongava pelas noites adentro, no aconchego das conversas à
lareira; de quando o sol ameno de Março convidava a abrir a paisagem de par em
par sobre o vale do rio Cértima, ou a flutuar o olhar pelas serranias mais
próximas; de quando o Verão se sentava nas sombras frondosas dos pomares, onde
as árvores abarrotavam de pássaros doces e fugidios; de quando o Outono oferecia
as suas fartas colheitas, aquelas que enchiam o lar e impregnavam ar com o cheiro
dos figos secos, das castanhas, do vinho novo.
Em qualquer época do ano, todas as tardes, depois do almoço,
a sesta era um hábito que o meu avô Cardoso praticava com toda a reverência.
Nem que fosse por poucos minutos, fechava os olhos e pausava a sua agulha de
alfaiate. Nunca soube se dormia ou se costurava sonhos. Apenas recordo que uma
enorme serenidade lhe iluminava o rosto.
De igual modo, fosse de Verão ou de Inverno, tenho na memória
as saudáveis incursões que os irmãos Cardoso faziam nas suas muito prezadas bicicletas.
Aprumadinhos nos fatos domingueiros, lá iam eles à descoberta de tudo o que
houvesse de novo para ver e admirar. O assombro dos seus olhos fazia com que o
mundo fosse um lugar sempre acabadinho de sair do forno. E quando digo mundo,
refiro-me aos muitos quilómetros tranquilamente pedalados e às imprescindíveis paragens que serviam como
pontos de referência. O crescimento notório de uns quantos pinheiros ou os
alicerces de uma qualquer casa nova, era o bastante para eles se sentirem entusiasmados
perante tão admiráveis avanços da humanidade. Quando digo mundo, pretendo
evidenciar a capacidade de ir longe, de fazer itinerários que se podiam
estender desde do Buçaco até à praia da Costa Nova. Digo mundo, agora, em que as mais curtas distâncias já só se fazem de automóvel.
Agora, os irmãos Cardoso já não enchem os bolsos de rebuçados
para dar aos netos, já não fazem os seus passeios de domingo, já não levantam o
chapéu para cumprimentar a vida. Mas tenho a certeza que continuam a pedalar
por aí, algures, por entre as árvores perfumadas do céu.
1 comentário:
estás que nem o vinho do porto. adoro ler-te
a.
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