Vladimir Kush |
O sorriso da máscara
vazia
Ao acordar, mirou-se no espelho e não se encontrou. Correu
pela casa inteira, abriu portas e armários, subiu ao sótão, meteu a cabeça e esticou
o pescoço pela janela da clarabóia. Nenhuma pista, o seu rosto havia mesmo
desaparecido.
Agora já tinha uma prova para mostrar ao seu senhorio. O rosto
havia-lhe sido roubado e a culpa só podia ser da câmara de segurança instalada
na entrada principal. Sempre que entrava ou saia evitava os sensores, ainda assim,
sentia o vídeo cravado nas costas, como um punhal, a atravessar o corpo de um lado
ao outro, passando-lhe bem no cerne da alma.
Mas, nestas condições, não poderia falar com o senhorio olhos
nos olhos. Como poderia ser credível mostrando algo que não existe? É
inultrapassável o conflito entre o visível e o invisível, entre o concreto e o
abstracto, entre o pensamento e a palavra.
Palavra de honra, a captura de imagem de uma pessoa é um
processo perigoso. Desde sempre, havia evitado qualquer espécie de objectivas,
mesmo assim, não tinha escapatória e bastava pôr um pé na rua, para o mundo
inteiro dar conta da sua presença.
Nada tinha a ocultar, é verdade, a sua vida era um livro
aberto. No entanto, a ausência de vida de era o único segredo que tinha
querido ocultar a todo custo. Por isso, era assustador sentir que havia uma
espécie de drone invisível constantemente pousado sobre a sua cabeça, com uma câmara
a filmar-lhe todos os gestos e até os próprios pensamentos. Frente ao espelho,
ensaiava expressões de naturalidade, mas o seu semblante não se descontrair de
forma alguma.
Sim, desejou muitas vezes apagar o rosto para pôr fim àquele
desassossego. Sem rosto seria livre, totalmente livre! Porém, um rosto roubado
por uma câmara de segurança, fica à solta, não se sabe a que mãos pode ir parar,
nem a que outros rostos pode servir.
De pescoço ainda mais esticado para fora da janela do sótão,
respirou fundo e lentamente, recuperou do sobressalto. Afinal, era a primeira
vez que podia abrir os olhos sem se assustar.
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