terça-feira, 3 de dezembro de 2019

SALTOS ALTOS

Era uma vez teatro APPC
Texto interpretado por Catarina Rodrigues em “Mulheres de Ferro, desenhadas a carvão”


Gosto de sapatos de salto alto, é normal, não percebo porquê há tanta gente a reparar nos meus saltos altos. Baixinho, para eu não ouvir, até chegam a perguntar como é que eu caminho. Aí não seguro a gargalhada estrondosa e exclamo bem do alto do meu desdém:
- Não caminho, estou em cadeira de rodas! Posso usar os saltos que bem me apetecer sem arriscar a torcer um pé na calçada.
É assim que me apresento: uso a vida como bem me apetece, sem meias medidas nem contemplações. Tal como ela fez comigo logo à nascença. Estamos quites!
Obrigada, vida, por me teres dado um só braço que ergo com a determinação de um ‘’Estou aqui!’’, sou mulher de pernas grossas, ligeiramente arqueadas, e uns quadris bem largos, como convém.
Em miúda, as tias e as primas velhas olhavam-me como se fosse uma figura bizarra, e em coro, andavam atrás de mim:
- Tapa, tapa, tapa...
Não tapei. Pelo contrário, com saias cada vez mais curtas, escancarei os meus peculiares atributos de mulher à luz do dia.
Ainda em garota, ao verem-me só com um braço, havia sempre alguém que perguntava:
- Ela fala?
Furiosa e espevitada, respondia à letra, como gente grande:
- Essa ‘’ela’’, sou eu mesma! E falo sim, pelo meu rico cotovelo, vejam bem...
Para se ver bem, os decotes tornaram-se sempre mais e mais atrevidos e sedutores. Por cima do ombro, do braço que não tenho, fui chamando a mim cada um dos meus múltiplos amores.
- E agora, ó mulher, o que vais fazer com o filho que trazes no ventre?
Criei o primeiro, o segundo e o terceiro filho. Criei-os com as mesmas falhas e os mesmos  acertos do que qualquer mulher. Filhos deste meu corpo inteiro, desceram-me do sangue até as ancas antecipadamente preparadas para a maternidade. Segurei-os no meu peito, e por eles, para os defender, estive sempre a braços com as batalhas do dia a dia. Derrotei ódios, calúnias, ciúmes, em suma, os preconceitos de uma sociedade de olhos tortos.
Do cimo dos meus saltos altos, encara-vos e declaro: este é o meu corpo, nu e cru, tão forte quanto imperfeito!


quarta-feira, 25 de setembro de 2019

E ASSIM ENFRENTO TODOS OS PERIGOS


não me arrisco em nenhum risco
risco-me
e apago o fósforo

faço um grande X com o giz
calculo que os meus actos sejam todos nulos
não ponho os pés no chão
nasci com os passos em branco

sábado, 21 de setembro de 2019

CULPO-ME



Não culpes os outros pelas tuas culpas
Embora sejam eles os verdadeiros carniceiros
Que te roubam as mãos
Para com elas liquidar o amor que te sobe à cabeça
O amor que te transforma num assassino sorridente
Tão capaz de abraçar com todas as forças
a humanidade em série
Como de repudiar com todos os argumentos da lógica
o intrínseco verso que te cresce na boca

terça-feira, 30 de julho de 2019

A RAIZ CÚBICA DA LUA


Foto: José Luís Bacelar


Pisa-me, pesa-me, pica-me na linha com que me olhas. Expulsa-me da tua língua. Cospe com vil veemência todo o amor que te aperta as goelas.

Nós somos água e alma. Impróprios na pose das sombras que o silêncio possui. Nós próprios. Água desalmada.

Não quero um abraço podre. É pouco o pensamento, mata-me a olho nu. Vamos despir-nos da ponta do punhal até aos pés. Só depois seremos inteiros. A dança em cada metade, de um lado a cintura, do outro a ansiedade. Mataste-me por isso já não precisamos de mais fingimentos. Estás livre para vomitar as lágrimas, as três mil pernas de ouro, os teus íntimos impérios.

Agora sim, podemos confrontar-nos, lábios a vapor, unhas fincadas no espelho.

Voraz seja a fúria com que agasalhas o sexo. Somos anjos perdidos de ódio, sem escrúpulos, verdadeiros.

Estamos aqui, frente a frente, não há outro conhecimento maior. O palco do medo acabou.

Eu e tu somos sangue aberto. Tira a máscara do corpo e sente o sabor das minhas asas.

Pesa-me, pica-me, parte-me. Mas nunca mais passes adiante sem me arrastares.