quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A DOENÇA DAS PONTES TORTAS

Quando penso fico às escuras


Nem as mesinhas de cabeceira

Funcionam como antes

Já não há pulsos a vapor

Todas as horas vêm da China

Com árvores para pendurar ao pescoço

E com genuínas pedras de plástico do antigo Egipto

  

Pertenço à idade dos erros

Por isso ferro os dentes

Enquanto continuo a não morder

O engodo que me engorda 


E olho para o caminho que parou

Ali mesmo à minha frente

Só para não me deixar passar

domingo, 14 de janeiro de 2024

OBSTÁCULO MEDITATIVO

Um gato rouba o meu pensamento

E foge com ele na boca.

Atiro-lhe pedras, mas ele não pára

Assusta-se e salta por cima do muro.


E agora? Penso eu sem pensamento…


domingo, 10 de dezembro de 2023

A NOITE DE TODOS OS MEDOS


No âmago do que é humano

Cravou-se o punhal mais tresloucado 

Malditas as trevas das nossas mãos  

Do viver nosso que a cada dia se desfaz


Desanda para trás a roda da história 

O tempo futuro foge-nos dos pés

Estamos agrilhoados até à alma

Somos escravos outra vez subjugados 

Arrastamos pesados medos e ódios 

 

Olho por olho no ranger dos dentes 


Só ficamos a salvo sempre que viramos costas

Quando nos escondemos no escuro

Das sombras que mais nos envergonham


A gorda matança dos inocentes 

Ah como nos repugna tanto 

À hora de engolir para adormecer


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

SOU MUITO SUPERFICIAL

no fundo da Lua 

encontro um poço

no fundo do poço

escavo um buraco

no fundo do buraco

escondo um barco 

que suavemente se vai afundando 

na forte rebentação do olhar


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O deslizar do ”Rio Sem Margens”

Levanta-te, ó Pátria minha!


 "Sob as palavras de pedra,

num genocídio de ideias rombas,

chagas no verde e vermelho abertas,

morreu o tempo da verdade comprovada.

É a Idade das Nuvens, premeditada,

martelando no engano das sombras,

que distorce a luz e nos derrota

por maltratados ouvidos e olhos.

A vozearia falida, comungada

por todas as línguas confusas,

qual pedra estéril de gente sem estrela,

ilumina o pior e escurece a vontade.

Levanta-te, ó Pátria minha!

Mais alto que o choro de pedra

e que a nuvem teimosa em ficar,

há um céu de integridade à tua espera."


© Jaime Portela, Janeiro de 2022

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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A SUAVE LEVITAÇÃO DAS PEDRAS


Vou abrir o céu para que as flores possam cair

Vou semear rios largos onde os sonhos naveguem

Vou agasalhar o silêncio com a minha voz

Para que o vento nunca se separe do pássaro


Pois que todo o corpo é leve

E o poema flutua além das coisas que são vazias


segunda-feira, 29 de maio de 2023

PÁSSARO PERFEITO

Não sei abraçar sem morrer

O vento tem ombros largos

Nada me agasalha o peito

Estou despida de tanto voar

De tanto devorar o céu 

Não tenho força para poisar


Não sei morrer em bicos dos pés

Por isso quero um punhal pequenino

Para que o meu coração possa crescer

Além da fresta por onde espreita


Não sei respirar sem tossir

O beijo é fumo a sair pela boca

Nos olhos talvez uma carícia

Filigrana de arame fininho


As asas do meu voo fecham-se

Sobre o peito


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

DÚVIDAS INVISÍVEIS

À segunda-feira, após o primeiro dia, Deus acordou...

Bocejou e espreguiçou-se durante uma eternidade. 

Terá resmungado com os seus botões

Sobre o ainda ter uma semana inteira pela frente

Antes de poder contemplar a sua criação.


Tudo era bom. 


Mesmo tendo feito os céus e a terra de uma assentada,

Tudo era bom

Porque para Deus não há impossíveis.


“- Não há impossíveis?”

Interpelou-se, um tanto inquieto.


Ao sétimo dia descansou,

Mas nunca mais conseguiu conciliar o sono. 


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

PÉ DE VENTO

Gente que passa de um lado para o outro

E volta a passar

Gente que escolhe a roupa

Gente que encolhe a barriga

Gente que olha para os preços 

E fica com os sonhos reduzidos 


Já não há como voltar a nascer

os braços esticaram tanto

que não cabem nos buracos das árvores

agora é impossível vestir o mundo pela cabeça

e os sapatos ficam apertados no meio do caminho


A vida vai secando pelo pé

Porque não há água para tanta fome


Há pessoas nascediças e que vingam

são elas as desenham as plantas das cidades

as que enchem o mundo com cartazes

as que navegam pelas avenidas

empurrando o tempo para a frente


Às vezes algumas pessoas voltam atrás

Sem conseguirem encontrar os próprios passos


apenas uma moeda caída no chão

tão pequena

que mesmo que não dê para nada

dá para tudo


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

DOS PÍNCAROS DO TEMPO

O tempo é um mergulho 

Por entre vagas altas e vigorosas

Vimos à superfície breve

Apenas por urgência dos pulmões 

Mas em cada novo fôlego 

Afoga-se sempre o mesmo mar

A mesma lua naufragada


Antigos futuros 

Raspam do barco todas as escamas

E os dias que ainda não lembramos

Hão de abrir a barriga do mundo

Até arrancar do fundo do poema 

As redes ainda por lavrar


Ao mar se devolve o voo da lua