terça-feira, 26 de maio de 2020

UM SOPRO DE LUZ

Foto: Horácio Graça


Duvido
De ouvido

Perfume que leio
Logo penso
Mais longe e mais tarde
Agora não
Por ora
Só um dentes-de-leão

Flor incauta

Não sei morrer

Dentro
O barco voa

sexta-feira, 27 de março de 2020

UM OLHAR DE ESPERANÇA


Acordo e estou a passear nos jardins suspensos da Babilónia, quem diria! Não me canso de subir escadas após escadas. Escher faz-me a vontade, mas basta uma só volta, para me troca todas as voltas. Mesmo assim, deixo-me deslizar no correr das águas que caem de socalco em socalco. Em cada queda, subo mais vinte mil patamares. Todos os terraços têm labirintos circulares, é necessário caminhar no sentido directo dos ponteiros do relógio. Vejo doze pontos de fuga, experimento e em qualquer deles, há uma saída para o interior de mim.

Acordo outra vez, agora na torre de Babel. Uma pessoa cruza-se comigo. Depois outra. E ainda mais outra. Um silêncio nos ombros cansados, uma multiplicação de idiomas que se vão apunhalando pelas costas. Respiro para não ter de respirar. 

Quero acordar. As flores precisam de beijos para se proteger dos venenos que vêm do pensamento. As pessoas que se cruzam comigo têm o meu próprio rosto, o mesmo batimento cardíaco, a mesma urgência de levantar o pescoço e olhar o mundo pela primeira vez.

Vou acordar sempre porque a humanidade é a única palavra que me resta.



#DEPemcasa 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A VERTIGEM DOS PÁSSAROS


Só custa cair
De resto, tudo na vida é lento e infame.
Não há mistério, a porta no seu umbral
Tanto dá como se esquece

Ao cair
Ressurge a ferida do primeiro instante,
O sangue ainda vivo
Ainda tão grande quanto a mágoa

Caído no chão
O tempo ressuscita, ergue-se
Da mão que o mede:
Um nada acima da certeza
Outro tanto de hesitação

Vem cair,
Todas as palavras já deram o seu fruto
Agora podemos ser leves,
Apagar todos os medos do mundo

Só caindo
A morte se atenua e se dilata,
Por ser a substância que ainda falta,
O caminho de tréguas, a rosa toda ampla

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A MOÇA DA SAIA VERDE


CRU - corpo (im)perfeito https://www.instagram.com/cru_ocorpoimperfeito/



dói-me o peito, mas o coração não dói, isso eu sei
assim como sei que o chá de limão faz bem
sempre que nos sentimos mal, dizem que há muito calor
na Califórnia, eu digo que as patas da humanidade
estão a cheirar a pneus queimados
o amor também pode ser inflamável, nunca
uma bomba atómica me saiu dos cantos dos lábios,
o sono alivia-me de tudo, dói-me o peito
porque tenho cólicas, nada mais do que isso
eu sei
assim como não sei quantas gotas de veneno
têm os soldadinhos de chumbo
os meus olhos podem guardar caroços de azeitona,
eu sou
um canteiro bom para plantar repolhos
mas não sou capaz de abrir as mãos completamente
de modo a mostrar as linhas do destino,
são outras as linhas que em mim se entrecruzam
com barcos e aviões de todos os lados
o peito com muito fumo, doem-me as cordas vocais
nas vogais que me navegam, um corte profundo
nos cabelos e um disparar de flechas
até desobstruir a alma, o caminho e o nariz