sábado, 27 de março de 2010

DA LÍNGUA PORTUGUESA

Hoje a minha palavra em português é habitat
E não sinto nenhum stress

Em escolher outras palavras assim com muitas nuances

Para fazer grafites nas paredes


Porque a saudade é geograficamente

A palavra mais estrangeira


O cão faz ão ão

Mesmo que seja um pastor alemão


Uma chave-inglesa é também uma coisa muito prática


De resto

As flores e as pedras não se manifestam


Basta sentir o perfume do mar e das giestas

domingo, 21 de março de 2010

SEGURANÇA MÁXIMA

Ter a certeza de tantas coisas. O caracol demoraria um dia inteiro a trepar até ao cimo da parede. De meia em meia hora calcula-se a distância percorrida. Não há nada mais extravagante do que a prática do alpinismo. Mas todos os bichos, mesmo os rastejantes, são trepadores por natureza. Não existe uma técnica definida para calcular as distâncias. Existe apenas a certeza de que as sombras crescem à medida que o sol vai baixando no horizonte. As sombras acabam por ficar tão altas como as paredes e as montanhas. O caracol atrasa-se significativamente porque desconhece a fórmula da linha recta. E faz constantes desvios através da textura áspera do cimento. Na trajectória aparente do sol não há qualquer tipo de desvios. O olhar, também, é rectilíneo. O olhar não é aparente. É fixo. Observa com toda a atenção os movimentos ondulantes do caracol. É difícil calcular a distância exacta entre dois pontos. É necessário que os pensamentos formem uma cadeia lógica entre si. É necessário que todos os lugares estejam interligados. Escalar a vida da Terra ao céu. Numa órbita curva dos foguetões. A contagem é decrescente. E infinita.

Não ter a certeza de coisa alguma. As casas dividem-se em duas metades. De um lado, os números pares. Do outro, os números ímpares. Não há espaços livres por onde passar. Todas as paisagens estão atravancadas com fitas métricas e marcos geodésicos. Impossível galopar por cima das horas e dos contratempos. As torres de vigia, embora adormeçam com muita frequência, mantêm-se firmes nos seus postos de comando. Têm luzes que piscam com toda a urgência. Qualquer direcção para onde se tente ir tem de ser anunciada ao pormenor. Nada mais caótico do que as raízes que se multiplicam no interior de uma frente fria. Os ventos levantam-se em terríveis aspirais de fumo e de pó. Esse tráfego subterrâneo de naves espaciais. Nunca se chega a lado nenhum. Há atrasos em todos os embarques. As portas fecham-se. Um caminho cheio de fronteiras. As barreiras automáticas que sobem e descem conforme a apresentação de um registo fotográfico. Identidade perdida. Números primos. Todas as casas ao nível do mar. Paisagem dividida ao meio. Hemisfério diurno.

As ondas. Sim, as ondas. Ter a certeza de algumas coisas. E ignorar completamente tudo o resto. Ignorar os lugares de abrigo. Ir mesmo até à beira das falésias. Sentir os pés molhados. De repente, uma necessidade incontrolável de frutos maduros. As rochas cor de pêssego mesmo ali. E os caranguejos a serem repelidos pelas marés. Caranguejos que se escondem por entre as escarpas mais escorregadias. O tempo move-se numa sequência de retrocessos. É tão difícil acertar os passos com a rotação do mundo. É tão simples dar um salto para fora do muro. O mundo é um muro perfeitamente transponível. Basta acordar. E estar de acordo com os princípios básicos da física.

Nunca cair numa armadilha gramatical. E saber sempre onde estão as entradas de emergência.

sexta-feira, 12 de março de 2010

PAISAGEM SEM REGRESSO

As casas velhas apagam-se do chão

Mesmo com as janelas fechadas

Não há como evitar o passar do tempo

A actividade das máquinas cósmicas

Os seus lábios metálicos abrem e fecham-se

Num pestanejar de cordas e roldanas


As novas obras multiplicam-se

E já não há mais céu para arranhar

Só futuros para distribuir

Só estradas para abrir à força

Dentro das nossas cabeças


Já não há mais árvores para navegar

Só um corpo antigo e em perigo de desmoronar

Seguro por estacas que aguentam os ombros e os joelhos

Muitas roupas vão ficar desalojadas

Muitos sapatos vão ficar sem alicerces

Caindo para dentro de um vento profundo

Sem respiração nem vontade para crescer

Para subir de andar em andar

Um corpo que de tão exausto vai ficar sem telhados

Vai desistir das suas portas mais urgentes

Das suas paredes mais íntimas e caladas

Um corpo que de tão alto vai precisar de uma grua

Para colocar a sua última palavra angular

Sobre as casas que vão voltar a nascer

quarta-feira, 3 de março de 2010

É SÓ PARA SABER


A minha mãe queixa-se porque os livros têm muitas palavras
gosta é dos diálogos abertos
daqueles que têm dois pontos, parágrafo e travessão:
Então?
Então o quê?
A escrita de agora não tem mesmo jeito nenhum
não há pontos nem vírgulas
as palavras chegam como se fossem tolas
e as pessoas que escrevem são todas malucas

A minha mãe queixa-se porque não faço nada
e que deixei de escrever 

As coisas que estão no computador não valem
porque não se vêem

A minha mãe gostava do tempo 
em que me punha a folha na máquina
e os poemas saíam todos certinhos
na mesma quotidiana medida do A5

Ó mãe, é só para saber: Isto é um poema?
Vai passear… - responde