quinta-feira, 21 de junho de 2012

O BULE



Vou beber um chá de algodão
Pode ser que faça bem
À bigorna do ouvido direito
Já que o esquerdo se deita na almofada
Sem querer saber de nada
Porque de nada adianta saber de tudo
Nem das abelhas picantes
Que estão escondidas nos relógios de corda

Um chá de água bem seca
Também deve acalmar as erupções cutâneas
As dermes e epidermes dos lençóis
As glândulas sebáceas dos dias inteiros
Das metades de um limão inspirado

Mas o melhor chá é de música verde-orvalho
Arrancada à raiz das madrugadas
Cura o cansaço das montanhas
Faz crescer o chão as portas e as ideias

Ainda assim
Nada que se compare ao chá de pedra
Saboreado com uns pingos de sol
Os suficientes para fazer nascer
Um arco-íris no céu da boca

sábado, 12 de maio de 2012

CURVA INCLINADA

Picasso 

 
Um pau cresce-me na alma
Pau seco
Pau de dar com o pau

A alma não me assenta bem
Em nenhum lugar
Está desnivelada

Tenho vontade de martelar
Amêndoas

Tenho necessidade de matar
Papéis

Os rios já não funcionam
Estão secos
Como um pau
Dentro da minha alma

A cabeça não assenta bem
Em nenhum lugar

É um móvel torto e postiço

A vida mata-me
A torto e a direito

Não sei escrever a eito


segunda-feira, 16 de abril de 2012

FALTA-ME O LUGAR CHAMADO AGORA



José Augusto Silveira


As fotografias fazem mal à memória
Digo eu, que só tenho olhos para dormir
De resto sou muito esquecida
E ponho girafas e girassóis em tudo
Ainda que não tenha caixas suficientes
Para esconder o mar a preto e branco

Já tive um vestido à marinheiro
No tempo em que escrevia com letras magnéticas
De muitas cores
O meu nome começava em amarelo
E dizia alô num telefone de brincar
Dizia alô porque estava longe

Mas só depois aprendi as medidas de comprimento
Os quilómetros de um voo nem se ouviam
Era como fazer o Atlântico num só bocejo
Para regressar
Para voltar a regressar
E ter sempre a mesma idade apagada
A mesma aparência de inusitada
De cadeira cansada e sem pés



sábado, 10 de março de 2012

A DANÇA DAS ROSAS

Arminda Lopes
  
Menina dos olhos bordados
Tão perto de morrer na esperança
Tudo é tão breve
Que fizeste da tua trança?

Menina das mãos apagadas
Os botões murcharam no casaco
A linha é frágil
Porquê ficaste sozinha no barco?

Menina dos cabelos mágicos
Tinhas pente e espelho de marfim
A Lua escondeu a cara
Tu não disseste não nem sim.

Menina das sete praias
As tuas flores eram tão morenas
O céu virou-se ao contrário
Não ficou o vento nem o poema.

Menina das faces rosadas
O mundo tinha as janelas abertas
Veio o cansaço quase morto
Todos os sorrisos caíram na gaveta.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

AUTO-RETRATO


Édouard Vuillard


O espelho adormece fixando um rosto
e alguém, com uma vénia formal, sai
da tela do pintor que acorda sobressaltado.
Depois de tirar o chapéu
senta-se tranquilamente numa cadeira
e fica a apreciar as sombras
espalhadas pelo chão.
O artista pede desculpa
por ter a vida assim, tão desarrumada
mas não estava à espera de visitas!
O intruso tira oito caranguejos do bolso
colocando-os em fila indiana
no peitoril da janela.
Adivinhando a preocupação do pintor
o dono dos caranguejos garante
que eles são sofisticados
e não causarão qualquer dano pictórico.
O anfitrião não saber o que fazer....
quer pedir ajuda ao espelho
mas tem medo deste lhe morder o pescoço.
Lembra-se que pode atacar de surpresa
agarrando o outro pela cabeça,
mas os caranguejos estão com atenção
prontos a atacar, a começa pelo pincel
e a acabar engolindo-lhe as mãos.
Neste impasse complicado
nenhuma ideia o ilumina,
a janela está fechada
e os caranguejos descem pela cortina;
mas em vez de oito são cem
com pinças muito afiadas,
bate-lhe sem nexo o coração
que fica desenhado a vermelho
na tela branca da emoção…

Quem ganha? pergunta uma voz
Os olhos nunca sonham…  responde o espelho.



sábado, 4 de fevereiro de 2012

DUELO SOLAR


O sol estrangula-me o pescoço
Com dedos letárgicos
Mas com o gume do meu olhar
Descubro o mapa do chão

Agudas estrias sobrepostas
Com sombras de ramos naufragadas
Onde translúcidas figuras sem rostos
Se insinuam ora sinistras
Ora plenas de alegorias geométricas

E já um auto-retrato de van Gogh se confunde
Com os óculos e chapéu de Pessoa
Tão iguais
Que a cadeira e os girassóis
Ficam do mesmo tamanho

Só mesmo uma nuvem pesada
Para acabar com estas visões rupestres
E me arrefecer os pés
Libertando-me das garras do sol

domingo, 1 de janeiro de 2012

BIBELOTS



Começou um outro ano bem comercial
E tenho os olhos com muito frio
Mas salvo-me com uma chávena de leite quente,
Porque já se sabe, é preciso evitar as irritações de alma
Uma por uma, assim como quem reza
As orações de todos os futuros,
É preciso contar com os imprevistos
Mesmo com aqueles que acontecem
Por deixar cair o coração dentro do açucareiro…
E tenho dito: O meu retrato ficava bem
Em cima de um paninho de tabuleiro!