quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

ANDA NO AR

Continua o frio

Há peixes abelhudos a espreitar pelas portas
É necessário um esquema para fugir ao ruído
das pedras maduras. E acordo
Com a boca vazia para morder as mãos
As próprias mãos sem um agasalho
Sem uma explicação para a falta de amêndoas azuis
Nu corpo
No esquecimento teimoso de todas as horas
De todas as raízes

E acordo pensando como é desnecessário acordar
sem nenhum plano estratégico
Apenas com a humidade branca e sem diálogo
Apenas com uma vontade de boca e um voo arrepiado

Lá fora a música até corta

Qualquer coisa vai acontecer

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

À VELOCIDADE DA SOMBRA


amanhã nunca morrerei
se em todos os momentos
andar à velocidade da sombra

Hoje nem uma pedra sonha

e o resto do tempo é uma metáfora
um céu vagabundo que cerra os dentes para não gritar
uma gota de mel que cai de uma nuvem constipada

nada acalma a lua
as suas dioptrias de Ser transparente

Hoje nem um nó

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CARTOGRAFIA

Apago as linhas do mapa

Ponho as montanhas ao nível da régua
Levanto o mar até afogar os olhos dos pássaros
Até inundar todos os centímetros do universo

Mas tudo é intenso e clandestino
E não há nenhum lugar para as águas
Nem mesmo para as mais secretas

É preciso voltar ao princípio das descobertas
Desta vez com  melhor vontade
Guardando o futuro numa caixa bem aberta

Ir até onde a voz acaba e o céu começa

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

SINAIS DE FUMO

 
A locomotiva fuma a terra até aos ossos,
vai acelerada e negra
girando em volta dum poço aberto
preste a descarrilar das calhas do sentimento,
preste a engolir o fogo do universo.

A locomotiva arde na luz do horizonte,
tudo é mar e o seu inverso,
lucidez negativa
a boca altiva, fornalha de futuro.

Pouca vida, pouca vida…
Gosto do teu sabor a ferro,
Gosto do teu saber a excesso.

Velocidade apagada,
nunca alcanço o que penso
porque vivo nas curvas do infinito.

Dentro da fala arde a lenha
desta pressa
desta viagem acesa.

A locomotiva entra no túnel da garganta
para gritar o nó mudo
do mundo cego.

Tudo é mar e o seu regresso.

Pouca água, pouca água…
Quero chegar
Quero viver fundo, até aos ossos.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

HISTÓRIAS DE ENCANTAR

Era uma vez uma chávena de chá que tinha graves 
problemas de consciência, mas que mesmo assim 
gostava de se mostrar trasbordante de sabedoria. 
Até que um dia caiu no chão e partiu uma asa. 

Era uma vez uma caneta que se preparava para 
assumir a plenitude da sua idade, quando de repente 
ficou sem tinta. 

Era uma vez uma estrela polar que apesar da sua 
carência afectiva, se esforçava por permanecer 
no mais absoluto segredo profissional. 

Era uma vez uma linda bicicleta de montanha que 
sofria de graves problemas de coluna, até quando 
o percurso era a descer. Por isso não teve outra 
solução do que parar e dedicar-se à escrita. 

Era uma vez um rico relógio de prata que vivia num 
magnífico palácio onde exercia o honroso cargo de 
guia turístico. Até que um dia foi declarado relíquia 
arquitectónica e não conseguindo suportar tal desgosto, 
deu em beber mesmo sabendo que não era à prova de água. 

Era uma vez uma mesa rectangular que por falta 
de verbas, teve de optar por ficar calada, apesar 
da sua potencialidade para mesa redonda. 

Era uma vez um advogado de defesa que se partiu 
e não voltou a ser recuperado pois não valia a pena tal 
investimento, tanto mais num período de tão grande 
contenção económica. 

Era uma vez um girassol com cara de poucos amigos 
que costumava estar virado para a parede e só se 

mostrava em dias de grande solenidade ou 
quando não avistava nenhum turista por perto. 

Era uma vez uma linha recta que ficou interrompida 
temporariamente para beneficiação mas que apesar 
desse contratempo, continuou a sua árdua luta 
pelos direitos humanos. 

Era uma vez um número primo que recebeu 
uma condecoração pelos actos praticados 
em prol do progresso científico e tecnológico. 
Como grande filantropo que era, mostrava-se 
sempre de cabeça baixa em sinal de submissão. 

Era uma vez uma máquina de escrever 
que se avariou mesmo a tempo de evitar 
que fosse cometido um acto de desespero. 

Era uma vez uma tarde que ficou bloqueada 
numa compacta fila de trânsito e não chegou 
a tempo de assistir ao pôr do Sol. 

Era uma vez uma ideia que falhou 
devido a um corte de energia. 

Era uma vez uma lâmpada 
que se apagou por falta de amor. 

Era uma vez um salto olímpico 
que tinha por objectivo a felicidade. 

Era uma vez uma chávena sem asa 
que não sabia que fazer da sua vida. 

Era uma vez uma vida que ficou esquecida 
na prateleira porque não havia mais espaço 
para o seu coração. 

Era uma vez uma caixa completamente vazia 
e sem histórias para contar. 

Era uma vez um mundo que por falta de imaginação 
ficou redondo como um pássaro.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

TUDO A CINCO EUROS E ANTES QUE A POLÍCIA CHEGUE

Sobre a expulsão dos ciganos da França, tudo já foi dito com magistral lucidez no post do Funes. Apenas me atrevo a acrescentar uns pequeníssimos detalhes, pensamentos que me vão surgindo nos intervalos do meu bem dormir.

É um alívio viver num país tolerante como Portugal, deste território nacional nenhum cigano será mandado embora. O máximo que pode acontecer a essa gente é ser enxotada de junto da nossa vizinhança, aldeia, vila, cidade ou distrito. Se se mantiverem à légua, os ciganos são fixes. Até dão muito jeito para fazer com que as crianças comam a sopinha toda.

Além disso, a quem compraríamos a melhor roupa e sapatinhas de marca? São mesmo úteis quando moram debaixo da ponte e vendem tudo ao preço da chuva. Mas também, com o rendimento mínimo que recebem, têm o dever de nos prestar alguns favores, ou não?

Ah pois...

terça-feira, 31 de agosto de 2010

OS ABRUNHOS

apresento queixa contra este açúcar veemente
contra estas abelhas azuis que picam os abrunhos

contra esta idade aberta ao ritmo do galope

contra o precipício que aparece sem aviso

caindo para dentro de outro céu, de outro grito


as cadeiras morrem e sonham e bocejam

e batem o pé

e partem-se porque estão derreadas de tanto sol

porque queimaram os braços com tanto mel

porque já não podem com tanta eternidade


não sei como as árvores não se desfazem no chão

talvez a única técnica de sobrevivência seja a morte

talvez o próprio sol precise de raízes para não apodrecer

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

SABERES


Ir à escola para quê? Lê a sina como ninguém, fluentemente, e em todos os idiomas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

PETIÇÃO PARA ACABAR COM O MÊS DE AGOSTO


Agosto é o pior mês para férias.
Ir à praia em Agosto é de doidos.
Em Agosto o trânsito assusta.
Casamentos e baptizados em Agosto deviam ser proibidos.
Blogar, neste mês, é escrever pró boneco. Nem o Privada cá anda.

Bom, bom mesmo, só o luar. E a fruta da época.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

POEMA FULMINANTE

É possível ter um ataque súbito de vida
Desses que não têm origem conhecida

E que causam grande consternação

Desta idade… quem diria


Estamos todos sujeitos a nascer de um momento para o outro

Basta bater com a cabeça numa flor

Ou deixar entrar uma formiga miudinha para o peito


Ninguém escapa

Quer se escreva em texto corrido ou entre aspas


Nasce-se com um sorriso crónico

Que não há como o curar

Nem mesmo praticando muita ginástica interplanetária


Além do sorriso

Há outros perigos igualmente alegres

Fatalmente alegres


Não há remédio, nada mata a vida!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

EM TERRA FIRME

Para uma amiga com altas batidas


Estou sempre a perder-me nas coisas que penso

Deixo as palavras esquecidas pelos cantos

Até elas se encherem de bolor e de peneiras miudinhas

Daquelas que entram nos armários para comerem a roupa


Não tenho nenhuma táctica de navegação

Por isso respiro com os olhos fechados

E deixo que o tempo me puxe pelos pés

Fazendo-me crescer ao contrário


Sinto-me crescida desde que comecei a brincar

E a fazer desenhos com o coração


Sei que há estrelas minúsculas por onde posso fugir

Mas decidi ficar até que as formigas se fartem de mim


Já aguento qualquer pedra ou negação

Porque agora só vou pela minha consciência

Contra todos os passos que limitam a liberdade


Perco-me dentro das coisas que penso

Mas insisto e encontro sempre uma saída

Esta é a minha voz

sexta-feira, 9 de julho de 2010

ÚLTIMA HORA

As cadeiras quando adormecem

Deixam cair a cabeça


Por vezes os braços também caem


É nessa altura que o corpo acorda


E num sobressalto põe-se em pé


Porque está na hora das notícias

quinta-feira, 24 de junho de 2010

TELHADOS DE PAPEL

As coisas mais práticas quase nunca estão à mão

Nuvens, caminhos, ideias, caixas, árvores...

Sempre na última estante de cima

Ou num desvio entre o mar e a garganta


É difícil estar só

Porque a porta bate muito mais que o coração

E os olhos vivem numa correria enquanto dormem


Não há como segurar o vento

segunda-feira, 14 de junho de 2010

UM SOL PARA TRAZER NO BOLSO

Uma pessoa com paciência
Poderia construir um mar em miniatura

Teria apenas de gastar muitos fósforos


As conchinhas de mar

Só servem para outras filosofias


O abominável homem das neves

É todo feito de peugadas

E de testemunhos oculares


Por isso

Nada mais confortável para uma montanha

Do que crescer dentro duma garrafa

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A ÉTICA DAS MÁQUINAS DE CALCULAR

A leitura de Novalis deixa-me a cabeça fragmentada

É prático saltar por cima dos bancos e das mesas

E atirar o mundo para trás das costas

Como quem já se esqueceu de tudo

Ficando apenas com as dores musicais


Não vais

Ter outra oportunidade

Chegou a época das cerejas


O amor tem consequências singulares

E a guerra dos cem anos já matou a memoria


Mas as nozes e os poemas épicos

Provocam aftas nos ouvi
dos

Até houve um poeta romano chamado Ovídio

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Aqui estou de regresso com uma máxima:

NADA COMO NÃO FAZER NADA.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O ÁBACO DO SILÊNCIO

O futuro vai caindo no esquecimento

A verdade é que não consigo poisar os pés

Nem os olhos por muito tempo

Se o faço fico com dores na fechadura

Porque sou uma porta sem cadeados

Uma porta escancaradamente secreta

Que não leva a nenhum lado


O esquecimento é o vigor mais forte dos dias


Cada pé tem os seus terrenos falsos

E as suas areias movediças

Não conheço gesto mais vincado

Do que a mão quando está cansada

E deixa cair o lápis a espada e a rosa


Todos os fusos horários são lentos


Vou apagar as árvores

Que estão por trás dos castelos

Vou pedir a ajuda de um dragão

Já não tenho medo das rocas

Porque os dedos estão habituados

A acordar por si

Quando chegam ao fim da letra z

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A MÁQUINA DE DAR AO PEDAL

Vivo como se estivesse na costura
As letras são os meus alfinetes e agulhas
Que vou tirando do cantinho da boca
E alinhavando por aqui e por acolá
Passo as linhas brancas
Pelas casas esdrúxulas e abertas
Onde estou sozinha com os meus botões
Não dou silêncio sem nó
Porque com a tesoura corto a eito
Sílabas a mais do que a medida da bainha
No fim sobra sempre manga e pano
Para começar um outro verso
Com um novo e mais vistoso feitio

Sou uma costureirinha aplicada
As nuvens mais esfarrapadas
Caem-me do joelho até ao chão
No pescoço enrolo uma fita métrica
Com ela meço as coisas sem distância
E fico só com o tempo que cabe numa mão

Ponto corrido ponto concreto
Ponto de partida
Para o dedo que já está gretado
De tanto esquecer e perpassar

Faço um remendo no destino
E alargo a cintura dos lados
Vou fazer um vestido com flores
Nem que tenha de rasgar o equador mais apertado

quarta-feira, 21 de abril de 2010

PARA UMA VIDA CHEIA DE ENERGIA


De vez em quando é bom falhar…
Falhar em cheio e com grande estilo!

Falhar para não falar com as palavras trocadas,

Para não andar na ordem contrária do tempo

Para não cair de sono quando se olha para o Sol.


Também é bom faltar todos os dias

Aos dias que tantas vezes nos sobram,

Saltar pela janela sem fazer barulho

E fugir através das sombras hertzianas

Que rasam os muros mais sintonizados

Os muros que temos dentro dos ouvidos.


Às vezes é saudável ficar doente

Coxear das ideias, ter muitas dores nos bolsos

E poucas vitaminas na sola dos sapatos.


A vida é de morrer a rir,

Basta ver como os pássaros

Chocam com o céu sem se partirem...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

AS PORTAS DO CÉU

Se a natureza fosse irónica, daqui há poucos dias, a África e a América Latina poderiam vir a ser a única saída para os países ricos e civilizados do Norte.

Quão esquecidos andamos das nossas pequenas fragilidades.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

TENHO DE APRENDER A CONTAR PELOS DEDOS

Com certeza não percebi bem, já baralho tudo, deve ser da idade. Não é possível acreditar que, com a mudança da escolaridade mínima, uma criancinha de 18 anos possa andar na primária. É absurdo! Igualmente disparatado é não se ensinar a tabuada em virtude de existir a máquina de calcular. Nesse caso, escolas para quê, se existe o Google?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

SONÂMBULOS DIURNOS

Há pessoas que perdem o sono
Não por serem esquecidas
Antes por estarem atentas demais
E levantam-se cedo para o procurar
Mas por muito que tentem não conseguem
Perguntam e põem anúncios
Só que ninguém sabe de nada
Ninguém viu nem ouviu nada
Mesmo quando se trata de um sono pesado

Há pessoas que perdem as mãos
Sempre que as guardam nos bolsos

Devia haver um sítio exacto para todas as coisas
Incluindo para as coisas que não mudam de lugar
Caso contrário muitos mares e montanhas
Poderão desaparecer dos mapas
Isso é tão certo como o eixo que espeta o mundo
E cujas pontas saem pelos dois pólos

Há sonos tão pesados
Que abrem o chão até ao seu íntimo
É por isso que quando as pessoas acordam
Caem num sono profundo

sexta-feira, 2 de abril de 2010

PÁSCOA

sábado, 27 de março de 2010

DA LÍNGUA PORTUGUESA

Hoje a minha palavra em português é habitat
E não sinto nenhum stress

Em escolher outras palavras assim com muitas nuances

Para fazer grafites nas paredes


Porque a saudade é geograficamente

A palavra mais estrangeira


O cão faz ão ão

Mesmo que seja um pastor alemão


Uma chave-inglesa é também uma coisa muito prática


De resto

As flores e as pedras não se manifestam


Basta sentir o perfume do mar e das giestas

domingo, 21 de março de 2010

SEGURANÇA MÁXIMA

Ter a certeza de tantas coisas. O caracol demoraria um dia inteiro a trepar até ao cimo da parede. De meia em meia hora calcula-se a distância percorrida. Não há nada mais extravagante do que a prática do alpinismo. Mas todos os bichos, mesmo os rastejantes, são trepadores por natureza. Não existe uma técnica definida para calcular as distâncias. Existe apenas a certeza de que as sombras crescem à medida que o sol vai baixando no horizonte. As sombras acabam por ficar tão altas como as paredes e as montanhas. O caracol atrasa-se significativamente porque desconhece a fórmula da linha recta. E faz constantes desvios através da textura áspera do cimento. Na trajectória aparente do sol não há qualquer tipo de desvios. O olhar, também, é rectilíneo. O olhar não é aparente. É fixo. Observa com toda a atenção os movimentos ondulantes do caracol. É difícil calcular a distância exacta entre dois pontos. É necessário que os pensamentos formem uma cadeia lógica entre si. É necessário que todos os lugares estejam interligados. Escalar a vida da Terra ao céu. Numa órbita curva dos foguetões. A contagem é decrescente. E infinita.

Não ter a certeza de coisa alguma. As casas dividem-se em duas metades. De um lado, os números pares. Do outro, os números ímpares. Não há espaços livres por onde passar. Todas as paisagens estão atravancadas com fitas métricas e marcos geodésicos. Impossível galopar por cima das horas e dos contratempos. As torres de vigia, embora adormeçam com muita frequência, mantêm-se firmes nos seus postos de comando. Têm luzes que piscam com toda a urgência. Qualquer direcção para onde se tente ir tem de ser anunciada ao pormenor. Nada mais caótico do que as raízes que se multiplicam no interior de uma frente fria. Os ventos levantam-se em terríveis aspirais de fumo e de pó. Esse tráfego subterrâneo de naves espaciais. Nunca se chega a lado nenhum. Há atrasos em todos os embarques. As portas fecham-se. Um caminho cheio de fronteiras. As barreiras automáticas que sobem e descem conforme a apresentação de um registo fotográfico. Identidade perdida. Números primos. Todas as casas ao nível do mar. Paisagem dividida ao meio. Hemisfério diurno.

As ondas. Sim, as ondas. Ter a certeza de algumas coisas. E ignorar completamente tudo o resto. Ignorar os lugares de abrigo. Ir mesmo até à beira das falésias. Sentir os pés molhados. De repente, uma necessidade incontrolável de frutos maduros. As rochas cor de pêssego mesmo ali. E os caranguejos a serem repelidos pelas marés. Caranguejos que se escondem por entre as escarpas mais escorregadias. O tempo move-se numa sequência de retrocessos. É tão difícil acertar os passos com a rotação do mundo. É tão simples dar um salto para fora do muro. O mundo é um muro perfeitamente transponível. Basta acordar. E estar de acordo com os princípios básicos da física.

Nunca cair numa armadilha gramatical. E saber sempre onde estão as entradas de emergência.

sexta-feira, 12 de março de 2010

PAISAGEM SEM REGRESSO

As casas velhas apagam-se do chão

Mesmo com as janelas fechadas

Não há como evitar o passar do tempo

A actividade das máquinas cósmicas

Os seus lábios metálicos abrem e fecham-se

Num pestanejar de cordas e roldanas


As novas obras multiplicam-se

E já não há mais céu para arranhar

Só futuros para distribuir

Só estradas para abrir à força

Dentro das nossas cabeças


Já não há mais árvores para navegar

Só um corpo antigo e em perigo de desmoronar

Seguro por estacas que aguentam os ombros e os joelhos

Muitas roupas vão ficar desalojadas

Muitos sapatos vão ficar sem alicerces

Caindo para dentro de um vento profundo

Sem respiração nem vontade para crescer

Para subir de andar em andar

Um corpo que de tão exausto vai ficar sem telhados

Vai desistir das suas portas mais urgentes

Das suas paredes mais íntimas e caladas

Um corpo que de tão alto vai precisar de uma grua

Para colocar a sua última palavra angular

Sobre as casas que vão voltar a nascer

quarta-feira, 3 de março de 2010

É SÓ PARA SABER


A minha mãe queixa-se porque os livros têm muitas palavras
gosta é dos diálogos abertos
daqueles que têm dois pontos, parágrafo e travessão:
Então?
Então o quê?
A escrita de agora não tem mesmo jeito nenhum
não há pontos nem vírgulas
as palavras chegam como se fossem tolas
e as pessoas que escrevem são todas malucas

A minha mãe queixa-se porque não faço nada
e que deixei de escrever 

As coisas que estão no computador não valem
porque não se vêem

A minha mãe gostava do tempo 
em que me punha a folha na máquina
e os poemas saíam todos certinhos
na mesma quotidiana medida do A5

Ó mãe, é só para saber: Isto é um poema?
Vai passear… - responde

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

SEM OLHAR

Cada vez mais, viver é um acto de heroísmo e arriscada acrobacia.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

RECEITUÁRIO

A vida começa três vezes ao dia
Às vezes não há por onde começar

Porque os dias não têm pontas

E a fita-cola fica colada aos dedos

Até ir parar à sola dos sapatos


Hoje em dia as roupas são muito cansadas

E ao mínimo desgosto enchem-se de borboto


Hoje em noite a pele é muito seca

E enche-se de borboletas prateadas


Quando a vida demora a começar

É preciso tocar às campainhas de todas as portas

É preciso pôr estacas nas árvores que estão tortas

É preciso tapar as casas que ficam rotas

É preciso rasgar as palavras que vão caindo mortas


Mas quando os dias vêm com demasiada antecedência

Só há uma solução:

Espirrar três vezes para desobstruir o coração

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O ZERO INFINITO

Os dias todos alinhados, em ar de marcha
Porque é preciso despachar os poemas num instantes

Antes que eles murchem e se partam pelas asas.


É preciso empurrar os olhos para a frente

Em direcção aos filhos que estão por abrir,

Para que eles atravessem de novo as pontes

Que estão agora a ruir pelo peso do nosso sono.


E as palavras todas a pingar pelas paredes abaixo

Como se fossem chuva disparada por canhões de guerra

Que não se podem render diante de um silêncio obrigatório.


É difícil abrir passagem por entre os pensamentos apertados,

Há instantes em que nem uma clave de sol

É capaz de entrar no buraco da partitura.


Ninguém pára porque os olhos estão sempre verdes

E os cruzamentos são lugares de velocidade máxima

Com as árvores e as girafas todas em contramão,

Os cruzamentos são esquinas redondas

Onde os polícias e os larápios atacam ao pôr-do-sol

Vestidos com as mesmas fardas e os mesmos apitos.


Já há não como distinguir as palavras umas das outras,

Todas as batalhas são geometricamente iguais,

Com as mesmas medidas e as mesmas sílabas tónicas.


Custa a acreditar, mas ninguém sabe a idade do tempo

E ainda que se façam múltiplas equações

Não se há-de encontrar o comprimento do futuro que falta

Porque tudo é eterno como a numeração romana.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

MAIS UM ADEUS


Procuravas onde te esconde
Mas a vida não tem portas de fechar por dentro
Só os olhos

Fechaste-os para sempre.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

MARCAS

Fez um X nas costas da mão para servir de aviso. Mas passou a tarde toda a tentar lembra-se daquilo que não se podia esquecer. À noite, esfregou com muito sabão para conseguir dormir.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

COMO ESCREVER UM GUIÃO

Depois de ter afiados os lápis todos
Apagou a televisão e foi dormir

No meio da noite descobriu que não tinha dedos

Apenas uma almofada cheia de diamantes


Por não poder voltar atrás na vida

Teve de andar com o filme para a frente

Até que o Sol nasceu e se viu a cabeça de um leão

Era o leão da Metro-Goldwyn-Mayer

Nessa altura apareceram nuvens altas

E o Sol desligou-se com um enorme rugido


Os braços espreguiçaram-se para puxar uma ideia

Mas o mundo ficou tão grande

Que a partir daquele instante seria difícil imaginar

Um argumento válido para continuar a viver

Um argumento que fosse credível e original


Ainda assim os lápis estavam todos afiados até ao limite

Por isso era complicado escolher outros desafios


Finalmente um cowboy entrou na história

E deu um tiro fulminante

Que deixou o ar impregnado de tanta pólvora

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

ESTA MESMO MUITO FRIO

Hei-de ficar velha sem perceber como é possível aturar um país onde existe algo que se designa de “escolaridade obrigatória”.

Os miúdos, sobretudo os mais crescidos, deviam ir para escola com a mesma vontade com que vão para uma noite de karaoke ou isso.