terça-feira, 20 de setembro de 2022

UM VASO DE MARGARIDAS

Uma margarida olha-me 

com um olhar de quem já desistiu de olhar

só precisa de água

diz

para as suas pétalas ficam bronzeadas


Cuidado com o Sol

digo

mas a minha vontade 

é de entrar dentro de um buraco de minhoca

e ir

até à extremidade de um vaso capilar


O vaso da flor derrete-se

e o universo vai limpando os lábios

pois mais ninguém participa desta refeição


num tempo precário só resta a beleza


talvez nem a luz

nem a geometria aguda da alma


Só uma vontade de comer palavras

e de olhar cegamente


Não há cicatrizes no céu

diz um perfume de margarida


Mas a vida continua ferida

e é tão fácil desenhar uma flor

basta fechar os olhos e deixar cresce


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NATUREZA MORTA

Uma maçã desafia outra: Vamos cair?

A outra responde que ainda está verde

Para esse tipo de aventuras.

Ah, que sorte nascer vermelha...

Melhor é nascer rente ao chão, responde.

Não, melhor é não ser morta pelas mãos.

A terra é suave,

E espera sempre pelos dias mais maduros,

Espera pelas melhores palavras.

A terra é sempre. Todos os dias há dias.

Todas as maçãs são feitas de terra doce.

Todas as maçãs são brancas como as palavras.

Todas as palavras têm sementes por dentro.

As palavras não caem sem estarem maduras.

As palavras crescem vermelhas,

Melhor, nascem rentes ao coração.

Todas as crianças gostam de roubar maçãs.

Todas as pessoas gostam de morder maçãs.

Todas as cidades têm árvores e avenidas.

A terra é sempre. Todos os dias há crianças.

Ninguém nasce sem a sua própria sombra.

Nenhuma sombra poisa no chão sem estar madura.

Nenhuma sombra descansa à sombra.

Nenhuma palavra se pode cortar em duas metades.

As avenidas já estão preparadas

Para qualquer tipo de aventuras.

As pessoas não estão preparadas

Para nenhum tipo de palavras.

As pessoas compram quilos de maçãs verdes.

As mãos não tocam na terra. Preferem as facas

Para descascar a pele das palavras.

As mãos não caem de felicidade.

A felicidade não cai de madura.

A terra é sempre. Todos os dias há milagres.     

E mãos para os fazer.

Nenhuma palavra descansa.

Nenhuma sombra se pode guardar nas mãos.

Nenhuma cidade cai do céu.


Adormeço e uma maçã cai-me no regaço.