A Preguiça
Não se trata de tonturas. O que se sente é mesmo uma ligeira oscilação da casa. Porque ela anda mesmo a flutuar no ar. Bastará ir até a janela para verificar o deslizar da paisagem. Mas não vale a pena tal esforço. O calor da fogueira mantém-se inalterável, a chaminé tem uma boa tiragem, por isso, o fumo não entra para o interior. Sim, apenas o cheio da fuligem poderia causar incómodos respiratórios. Mas como tudo está muito bem organizado, a leitura pode continuar sem que haja distracções.
Os óculos estão poisados no regaço. Que maçada, falta pouco para ser necessário acender a luz. Nessa altura, vai ter mesmo de levantar-se da poltrona para ir até ao interruptor. Apetece adormecer naquele quentinho. A casa viaja não se sabe a que velocidade. Nem qual a altitude que já atingiu. Tudo é suave como as almofadas sobre as quais os braços descansam.
Apenas a certeza de estar muito longe. Porque nenhum ruído existe, para além do abafado crepitar do lume. O silêncio no chão e nas paredes. Uma tranquilidade assim tão acentuada, bem poderá provocar uma paragem cardíaca. Custe o que custar, os olhos têm de se manter abertos. Ou pelo menos, semiabertos.
Lá fora, a casa voadora deve ser motivo de espanto e perplexidade. Também é provável que passe despercebida entre todos os outros objectos voadores não identificados.
Lentamente, a luz da fogueira desfaz-se em cinza. Os óculos resvalam dos joelhos e caem no tapete. Os anjos entram com um tabuleiro de prata. Trazem chá e torradas. É pena, mas há instantes em que tudo é indigesto. E até as coisas mais leves, pesam na alma.
O espaço aéreo está vigiado por centenas de radares. No entanto, a casa continua o seu destino sem ser interceptada. Sem que lhe seja pedido vistos ou passaportes. A casa tem a vantagem de ter sido construída com bons materiais: paredes duplas e bom isolamento das janelas. Preenche assim, todos os requisitos internacionais.
Absurdo e despropositado é que, de repente, e depois de todos os anjos se terem retirado, se comecem a ouvir incessantes rajadas de metralhadoras. E que, por todos os lados, ecoem choros de mulheres e crianças.
Se não fosse o langor do corpo e esse aconchego provocado pelas nuvens, seria urgente ir ver o que se passa lá fora.