sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

DOS PÍNCAROS DO TEMPO

O tempo é um mergulho 

Por entre vagas altas e vigorosas

Vimos à superfície breve

Apenas por urgência dos pulmões 

Mas em cada novo fôlego 

Afoga-se sempre o mesmo mar

A mesma lua naufragada


Antigos futuros 

Raspam do barco todas as escamas

E os dias que ainda não lembramos

Hão de abrir a barriga do mundo

Até arrancar do fundo do poema 

As redes ainda por lavrar


Ao mar se devolve o voo da lua 


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O CAIR DA FOLHA

Dava-me jeito morrer com jeitinho

Em adormecido segredo 

Só com as formigas mais miudinhas

Todas em compasso de oração 

Carregada em ombros

Levar-me-iam a enterrar

Debaixo de um grão de areia


sábado, 22 de outubro de 2022

AO ENCONTRO DO NADA

Cada vez mais distante do meu próximo,

incapaz para a vida prática

e lenta na aquisição de ideias eficazes,

aqui estou, em abstractas miragens

sem saber o que é o mundo…

cega para tudo quanto é real

e confusa até nas coisas mais óbvias.


Do meu próximo que posso eu saber

se nada sei de mim,

que humanidade é esta que começa pelo fim?


Ao meu lado, uma cadeira,

como a distinguir do meu próximo?


Pensar, é não encontrar coisa nenhuma

em coisa nenhuma.


Qual a coisa que o meu próximo vê

quando julga que me vê?

Não serei apenas uma imagem daquilo que ele quer,

não serei a que se escolhe por engano

mas que coincide com a que é?


De que sou, sou…

e se sou, assim também o meu próximo.

Mas o meu próximo não está comigo

como está a sua evidência.

Como amar uma evidência?

Como se consegue conquistar

para as nossas causas mais bravas?


Nossas?…

As minhas e as de mais ninguém!


Que no mundo só existo eu

e cada um à sua maneira.


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

terça-feira, 20 de setembro de 2022

UM VASO DE MARGARIDAS

Uma margarida olha-me 

com um olhar de quem já desistiu de olhar

só precisa de água

diz

para as suas pétalas ficam bronzeadas


Cuidado com o Sol

digo

mas a minha vontade 

é de entrar dentro de um buraco de minhoca

e ir

até à extremidade de um vaso capilar


O vaso da flor derrete-se

e o universo vai limpando os lábios

pois mais ninguém participa desta refeição


num tempo precário só resta a beleza


talvez nem a luz

nem a geometria aguda da alma


Só uma vontade de comer palavras

e de olhar cegamente


Não há cicatrizes no céu

diz um perfume de margarida


Mas a vida continua ferida

e é tão fácil desenhar uma flor

basta fechar os olhos e deixar cresce


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NATUREZA MORTA

Uma maçã desafia outra: Vamos cair?

A outra responde que ainda está verde

Para esse tipo de aventuras.

Ah, que sorte nascer vermelha...

Melhor é nascer rente ao chão, responde.

Não, melhor é não ser morta pelas mãos.

A terra é suave,

E espera sempre pelos dias mais maduros,

Espera pelas melhores palavras.

A terra é sempre. Todos os dias há dias.

Todas as maçãs são feitas de terra doce.

Todas as maçãs são brancas como as palavras.

Todas as palavras têm sementes por dentro.

As palavras não caem sem estarem maduras.

As palavras crescem vermelhas,

Melhor, nascem rentes ao coração.

Todas as crianças gostam de roubar maçãs.

Todas as pessoas gostam de morder maçãs.

Todas as cidades têm árvores e avenidas.

A terra é sempre. Todos os dias há crianças.

Ninguém nasce sem a sua própria sombra.

Nenhuma sombra poisa no chão sem estar madura.

Nenhuma sombra descansa à sombra.

Nenhuma palavra se pode cortar em duas metades.

As avenidas já estão preparadas

Para qualquer tipo de aventuras.

As pessoas não estão preparadas

Para nenhum tipo de palavras.

As pessoas compram quilos de maçãs verdes.

As mãos não tocam na terra. Preferem as facas

Para descascar a pele das palavras.

As mãos não caem de felicidade.

A felicidade não cai de madura.

A terra é sempre. Todos os dias há milagres.     

E mãos para os fazer.

Nenhuma palavra descansa.

Nenhuma sombra se pode guardar nas mãos.

Nenhuma cidade cai do céu.


Adormeço e uma maçã cai-me no regaço. 


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

UM POEMA VAZIO


As pessoas vão e vêm pelas ruas

e a cidade está vazia

As janelas estão abertas

mas as pessoas sentem-se vazias

As árvores estão em flor

mas os pássaros vazios

não sabem onde bater suas asas

porque o céu é um vidro fechado

às rédeas altas do sonho


Ninguém sabe que as ruas estão vazias

porque todas as pessoas

têm os olhos vazios de tanto falar

e ninguém fala porque é feio 

falar com a boca cheia de palavras vazias


As pessoas dizem que não cabem na roupa

mas os braços caem das mangas

como navios à beira de um mar vazio

As mangas dão muito pano para o desespero

e o desespero deixa a boca vazia e amarga

como um mar caindo dos braços


As mães levam os filhos ao colo

e falam-lhes de um futuro vazio

Apesar disso

o futuro pesa nos olhos dos filhos

como uma ansiedade viva

que não se pode esquecer nem matar


A esperança enche as ruas desta cidade vazia

e as pessoas vão e vêm

enquanto aguardam o verde

ou o vermelho do destino

e ficam mudas de tanto esperar


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A SOLO

A carita que tenho é o que mais me desfeia.

Tirando isso, do pescoço para baixo, não se aproveita nada.

Talvez, lá no fundo, quiçá, possa haver um lado positivo...

Procurá-lo-ia se tivesse um busca-pólos.

Mas o melhor é não aprofundar muito o assunto.

Assim como assim:

Sei que há um buraco 

Na sola do meu sapato.


Sorte a minha, já tenho por onde fugir!


sexta-feira, 5 de agosto de 2022

UM FUTURO ATRASADO

As palavras não querem dizer nada

Quero dizer

As palavras não dizem aquilo que dizem

Dizem sempre aquilo que os outros ouvem  

Ou melhor

Aquilo que eles querem ouvir


Comunicar é dar

O que não sai de dentro de mim

O que falta à parte inteira do mundo


E nada falta


Porque todas as coisas estão vazias

Porque nada está por completar


E o futuro?


Não sei como continuar as minhas palavras

Não sei como concluir o meu pensamento


Não sei como inventar

Sem repetir o que trago na memória

Sem repetir as coisas que nunca fiz 


E o futuro

Porque nunca o é

Porque vem sempre depois

Quando já não estamos à espera?


quinta-feira, 21 de julho de 2022

borbolet_arts


 A ARTE DE LILIANA FERREIRA (E DA APCC) VAI ESTAR EM EXPOSIÇÃO NA ‘SUA’ GRANJA DE ANÇÃ
Liliana Ferreira tem 41 anos e nasceu em Coimbra, tendo vivido toda a sua vida em Granja de Ançã. E é a antiga escola básica daquela localidade, que frequentou em criança e foi entretanto transformada no Centro Comunitário da Granja e Gândara, que vai receber uma exposição em nome individual desta artista, reunindo uma dezena de obras produzidas no âmbito das sessões de artes plásticas da APCC - Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra. A inauguração vai ter lugar no dia 15 de julho, pelas 19H00.
Os trabalhos em exibição dizem respeito a um projeto artístico, na área da arte digital, que Liliana Ferreira tem vindo a desenvolver na última década. Através do desenho e da pintura – para os quais usa a boca, recorrendo a ferramentas de software – revela um universo muito particular, um mundo fantástico só parcialmente inspirado na realidade. Como imagem de marca, tomou para assinatura a figura de uma borboleta, que a define tão bem como qualquer traço.
Esta exposição ficará patente até ao dia 25 de julho e será a primeira em nome próprio da artista, que já integrou as exposições coletivas da APCC realizadas no âmbito do projeto “Cru – O Corpo (im)Perfeito” (Porto e Lisboa, 2019/2020) e do Bazar d’Sala (Coimbra, 2022). A iniciativa é organizada com o apoio da Junta de Freguesia de Ançã.
Trata-se também do arranque de um conjunto de exposições que a APCC está a planear apresentar nas comunidades de residência dos utentes do Departamento de Artes Plásticas, de forma a sublinhar o seu papel ativo e participativo, com base na sua identidade pessoal e artística. Assim se reforçará igualmente a importância da área artística na instituição, enquanto promotora da inclusão social.
Para conhecer melhor a artista Liliana Ferreira, siga-a no Instagram, na sua página pessoal (www.instagram.com/borbolet_arts) e na página do Departamento de Artes Plásticas (www.instagram.com/artesplasticas_apcc). Nesta última, pode ainda ver obras de outros utentes da Associação e proceder à respetiva reserva, que também pode ser feita enviando uma mensagem para suzete.azevedo@apc-coimbra.pt.
O Departamento de Artes Plásticas da APCC opera no pressuposto de que as condições orgânicas realmente geram incapacidades, mas não são essas que determinam o nível de funcionamento do indivíduo. Desta forma, utiliza a arte com o grande propósito da expressão, de comunicação de ideias, do desenvolvimento de competências e autoconhecimento e na elevada responsabilidade da edificação de ideias político-sociais.
Mais informação em www.apc-coimbra.org.pt/?p=11361.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

O TRUQUE


Não acredito no destino

Por isso o desafio:


— Vês as linhas da minha mão?

— Claro...


Pateta, nem repara que estou com o punho fechado!

 

quarta-feira, 13 de julho de 2022

ASSUNTO SÉRIO

 Por estes dias, apenas vou ser uma serial killer de poemas mortos.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

FORA DE BRINCADEIRAS

Cancelo o vou.

Voo ficar. 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

O PERCURSO DA LUZ

 

Bráulio espera as sereias gordas, de barrigas inchadas, quase a rebentar pelo umbigo, para com elas avançar até à saída do mundo, do mundo que é o seu próprio corpo todo apertado por dentro, músculos contra músculos.


Mas o pensamento de Bráulio é livre por natureza e convicção. Ele não tem de esperar por nada nem por ninguém. A sua espera é o futuro já em pé. A sua espera é a vida de goelas abertas:


- Sou um homem feliz, ouviram? Sou um homem feliz!!!


Bráulio é feliz porque nos seus sonhos cabem todas as mulheres de saias redondas, puras mães de santo, com charutos mordidos até à raiz da música, com batuques de uma dança ancestral que se acelera na respiração mais sufocada. 


Bráulio é feliz porque se reconhece como compatriota de todos as pessoas clandestinas, que rasgam os pés nos arames farpados, e mesmo assim persistem, caminhando sempre em frente, até aos territórios proibidos de uma geografia ainda estúpida que teima em se manter fechada.


Bráulio é feliz porque brinca com todas as crianças perfumadas pelo sol e pela lua, crianças que espreitam por detrás da enorme montanha nua, um dois três, toda a ingenuidade é incomensuravelmente feliz. 


Às escondidas, contando até cem, todos nós somos felizes, sem sombras de dúvida, sem sobras de riqueza, sem arrotos de fome, sem vómitos de hipocrisia.


- Procuro um abraço impregnado de paladar, de tacto e de urgência. Um abraço desobediente por ser descaradamente livre. Um abraço tão devastador quanto as asas que afloram dos colossais lombos das borboletas. Um abraço intrínseco e universal que me habite e me mate por inteiro. 


Bráulio, o despojado! 


Deixa cair a máscara, as lâminas frívolas, a veloz memória, as lágrimas longínquas.  


- Acredito na humanidade dita sem remissão! Amo-a a qualquer preço, vivo-a ­à viva força, invento-a com ímpetos de gula e de loucura... 


Bráulio, o derradeiro!


Primordial beijo por colher, por morder, por incendiar.

 

 * Texto elaborado para CRIARTE TEATRO 2021 appacdm-viana do castelo


segunda-feira, 21 de março de 2022

POEMAS POR ESCREVER

Haverá poemas muito bem calibrados

Poemas de métrica medida a olho

Repletos de muita lábias e unha bicuda 

Poemas propícios ao bem da humanidade

Decalcados em tinta semântica muito nítida 

Poemas náuticos a sair dos olhos

Muito vendidos ao preço das formigas

Poemas alucinados e altamente traficados 

Alma ou arma tanto faz desde que matem

Poemas sem fundos de deslumbramentos

Fechados bem no fundo por mútuo consentimento

Poemas tão tépidos quanto épicos

Poemas com flores fulminantemente 

Poema até ao fio do sangue 

Poemas de sal de sol de sede


E haverá poemas carnívoros  

Letra a letra de todas as palavras arrancadas

Letra morta de uma vida já sem boca

Letra lenta de uma humanidade ainda sem roda