quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

AUTO-RETRATO


Édouard Vuillard


O espelho adormece fixando um rosto
e alguém, com uma vénia formal, sai
da tela do pintor que acorda sobressaltado.
Depois de tirar o chapéu
senta-se tranquilamente numa cadeira
e fica a apreciar as sombras
espalhadas pelo chão.
O artista pede desculpa
por ter a vida assim, tão desarrumada
mas não estava à espera de visitas!
O intruso tira oito caranguejos do bolso
colocando-os em fila indiana
no peitoril da janela.
Adivinhando a preocupação do pintor
o dono dos caranguejos garante
que eles são sofisticados
e não causarão qualquer dano pictórico.
O anfitrião não saber o que fazer....
quer pedir ajuda ao espelho
mas tem medo deste lhe morder o pescoço.
Lembra-se que pode atacar de surpresa
agarrando o outro pela cabeça,
mas os caranguejos estão com atenção
prontos a atacar, a começa pelo pincel
e a acabar engolindo-lhe as mãos.
Neste impasse complicado
nenhuma ideia o ilumina,
a janela está fechada
e os caranguejos descem pela cortina;
mas em vez de oito são cem
com pinças muito afiadas,
bate-lhe sem nexo o coração
que fica desenhado a vermelho
na tela branca da emoção…

Quem ganha? pergunta uma voz
Os olhos nunca sonham…  responde o espelho.



sábado, 4 de fevereiro de 2012

DUELO SOLAR


O sol estrangula-me o pescoço
Com dedos letárgicos
Mas com o gume do meu olhar
Descubro o mapa do chão

Agudas estrias sobrepostas
Com sombras de ramos naufragadas
Onde translúcidas figuras sem rostos
Se insinuam ora sinistras
Ora plenas de alegorias geométricas

E já um auto-retrato de van Gogh se confunde
Com os óculos e chapéu de Pessoa
Tão iguais
Que a cadeira e os girassóis
Ficam do mesmo tamanho

Só mesmo uma nuvem pesada
Para acabar com estas visões rupestres
E me arrefecer os pés
Libertando-me das garras do sol