quinta-feira, 5 de agosto de 2021

"Feitas de Ferro, Desenhadas a Carvão" Era Uma Vez Teatro - APPC

 

Cravo-te as unhas em volta do pescoço. Já não aguento os teus beijos de hiena. Tens os dentes podres de tanto te alimentares de carne morta. Mas sou o cadáver que anseia por todos os teus regressos.

Os ossos do meu corpo aparecem partidos nas radiografias, fraturas expostas, que não consigo disfarçar. Bem me escondo da cabeça aos pés com as jóias e as roupas de marca mais caras. São os fardamentos completos que me impões e que eu uso com obediência. Quiçá também com uma incerta vaidade. Quando ando com o braço ao peito, coloco a pulseira mais cravejada de brilhantes, aquela que provoca maior inveja. Pudera, há sempre bandos de abutres comovidos a rondar por perto. Assim como as andorinhas sem cabeça que me chamam para o abrigo dos seus ninhos. Coitadas, como são tão tontas.

Ninguém compreende como sou mulher de unhas afiadas. Uma mulher que às vezes tenho voz e avanço para a linha da frente, contra o inimigo que se ajoelha à minha cintura, implorando-me perdão. Às vezes sou detentora de um arsenal de armas secretas, com as quais podia matar e estrangular o mundo. Mas basta-me a maneira como te estoiro com a fúria dos meus lábios.

Ah, nem sonhas do que sou capaz de fazer para me libertar. E liberto-me sim, sobretudo porque preciso de te prender a mim de forma tão cega quanto avara, de te aprisionar dentro dos meus músculos cardíacos, de te sentir de cabeça adormecida, caída sobre o meu peito. 

Aos domingos de tarde, quando passeamos de mãos dadas, com os dedos só suavemente entrelaçados, quase posso jurar que sorris e que tens os olhos rasos de lágrimas. Temos uma vida bonita de se ver, poderíamos pô-la na varanda ao sol.

Mas sou a mulher que tropeça na vida e rola escada abaixo, a mulher dos hematomas maquilhados com muita base, a mulher das pernas rasgadas, a mulher dos cabelos arrancados da raiz até ao crânio. Sou a mulher que erra em tudo o que faz ou deixa por fazer, a mulher sem serventia, que apenas serve para tirar um homem do sério, esse amo e senhor de todas as coisas. Dono da minha vontade.

Por isso não perdoo a covardia que me ata as mãos desde o amor à primeira vista, à primeira bofetada. E cravo-te as unhas em volta do pescoço porque sei que é a mim que quero matar, em nome de todas as mulheres anónimas, de todas as mulheres que vivem mortas, de todas as mulheres que calam a revolta, de todas as mulheres que desenham corações no espelho embaciado por uma respiração já sufocada ao longo dos séculos. 

Cravo as unhas nas paredes rasgadas do futuro e denuncio-me a mim mesma, com todo o medo de que sou vitima.

 

 

 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

PALAVRAS EM BRANCO

Há idades sem prazo de validade

Idades em que se morre de amor em cada suspiro


Só quando as articulações das pernas e dos braços caducam

É que o amor se torna vitalício


As pedras amolecem

Mas desmedida é a areia que cai e que passa



Com amor, caminhamos por cima das águas

sexta-feira, 2 de abril de 2021

EXALTAÇÃO EM TEMPOS DE ABISMOS

Talvez seja infame a passagem dos humanos aqui na terra
Já Noé os tinha proscritos da limpa liberdade dos outros bichos
Dos que voam, submergem ou rastejam
Macho e fêmea, resfolegando hálitos de insaciável gula
Louvas-as-deus sem dedos
Um longo fio de contas
Com pedras minúsculas que nenhum vento reza

É possível que o planeta esteja programado para ser azul
E mais nada, matéria de mero acaso em trajetória não traçada

Da espécie que conspurca o cosmo com as suas marcas rupestres
Não se esperava tanta memória nem alarido
A música, a lógica, a roda, o tiro, o coração, o medo
Tudo isso era para ter ficado atravessado no pescoço do tempo
Sem nunca precisar de ter sido engolido

E agora Adão? Tu próprio achas que mereces sair de cena
Sentes que mataste o céu com a tua ganância e a tua pressa
Atormentado, não apaziguas o pecado da sapiência
E continuas a expulsar de ti o fruto e o mel de cada dia,
Vivendo entre a inquietação e a obscura alegoria

Mas Platão, não eternizes muito mais a tua saída!

Vê, o teu tempo ainda não esta no fim, humana criatura,
Baloiça bem alto todos teus sonhos,
Mede a palmo o infinito que em ti sobeja
E que o teu coração se amplie

Até o deslumbre dos pássaros

O LACRE INVIOLÁVEL DAS PALAVRAS

As janelas abrem-se para arejar as casas pela manhã

A morte universal, histérica até à ponta dos cabelos

Já não se aguenta mais o significado nauseabundo das palavras 

Ainda que seja verdade que as mulheres falam muito 

Falam para arejar, pois era sabido que nos fins dos tempos

Iria ser assim, com a invisibilidade de um deus que enlouquece

Por não existir, por não conseguir ouvir os segredos das mulheres 

Que falam alto, histéricas, sempre histéricas, como o amor

O amor que não sai, mesmo que se puxe a tosse do fundo do peito