segunda-feira, 27 de abril de 2009

EVIDÊNCIA

Uma máquina de lavar roupa é mais útil do que um poema.
Aliás, tudo é mais útil do que um poema.
Por exemplo, uma faca serve para cortar o pão,
um poema nem serve para cobrir o coração.

Além do gesto, não devia existir
outro tipo de comunicação.
Os peixes têm mais profundidade
do que a alma cansada dum poeta.

Os poetas são pesados,
têm mãos e lábios de morte.
Os poetas são achatados
como as mesas e os livros.

Devíamos ter ficado pela descoberta das pedras,
pelo cheiro húmido e geométrico da terra...
Mas passámos além do erro
e assim chegamos à angústia.

Os poetas deviam estar
debaixo duma malga, como os pirilampos.

Um poema é sempre uma coisa metálica,
é uma exclamação aguda e insuficiente,
uma maneira de transgredir e confrontar...

Um poeta é como um jogador
que atira a sua fala, até à raiz da dor.

Um poema é sempre inútil,
mas por ser inútil, é que é poema...


P.S.: O Funes é que tem razão.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A SOLIDÃO

Não consigo parar. Caminho de um lado para o outro, seguindo todas as indicações de saída. Mas todos os lugares de onde saio, vão dar a outros de onde também é preciso sair, por serem tão fechados como os anteriores. Uma vez entrei num desses estacionamentos subterrâneos que começava no piso zero, quer dizer, ao nível do solo. Depois a saída era feita sempre a descer -1, -2, -3… Parecia que estava a ir para o centro da Terra. Mas a verdade é que sem saber como, no piso -7 acabei por chegar outra vez à superfície. Encontrei a mesma estrada por onde havia entrado. Recursos da arquitectura moderna, pensei.

No entanto, o que se passa comigo é outra coisa bem diferente. É sentir que não consigo respirar. Que é o próprio céu que me oprime. Que, por mais largo que seja o horizonte, nunca me sinto à vontade. Quando vou pelas ruas, os prédios começam a apertar-se uns contra os outros e tenho de correr para não ficar com o corpo esmagado no meio deles. Outras vezes é a multidão que não me deixa passar. As pessoas fecham-se em meu redor como se não me quisessem deixar fugir.

Na verdade, ninguém repara em mim, e a minha presença passa sempre despercebida. Há alturas em que até duvido da minha realidade física. Não consigo encontrar a minha imagem reflectida em nenhum espelho. Nas vitrinas das lojas, vejo uma grande quantidade de gente e não me distingo no meio de todas aquelas figuras. Só me reconheço pelas roupas que trago vestidas: meus sinais exteriores de tristeza.

Há sempre uma porta fechada no meio do caminho por onde vou. É uma porta que está constantemente diante de mim. Para onde quer que eu vá, ela aparece. Tento arrombá-la, mas não tenho força. Já só me resta o cansaço de tanto caminhar. E caminho sempre em frente, apesar da porta que me impede a passagem. A porta está sempre lá, na minha frente. Mesmo que caminhe com toda a determinação, nunca a consigo alcançar, nunca consigo deixá-la para trás. É uma porta que, estando sempre na minha frente, me persegue como um cão. Por isso, olho constantemente para trás.

Mas não há nada atrás de mim. O mundo é um desenho ténue que se vai apagando à minha passagem. O mundo é um desenho que apenas se torna nítido de cada vez que dou um passo em frente. O mundo é uma rotunda por onde se pode seguir em todas as direcções. Só há um caminho para todas as direcções. Um caminho aberto e sem saída.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

MERCÚRIO



a manhã sai de casa apressada
mal tem tempo para acordar o corpo
corre nua como a água
entra em todos os cantos
anda à procura dumas sandálias com asas
mas os pássaros estão todos magoados pelo frio
e a vontade já não volta

a temperatura não sobe nem desce

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Libertação



Hallelujah - Alexandra Burke

terça-feira, 7 de abril de 2009

De pantufas

Nascemos descalços. Os pés podem dar que pensar. Cada vez mais dedicados, mas frágeis. Só escolhem solos almofadados, sensíveis ao mais pequeno grão de areia.

Os seus pés ficaram-me na memória: Grandes, largos, imponentes. Pisavam o chão com o impacto de toda uma genuína humanidade. No Verão, depois de calcar os sulcos da água, saía da terra suave, para o caminho duro e áspero. Sem sentir qualquer diferença. A sua pele era de sola forte que não se gastava com os gumes afiados do tempo.

Homo erectus. Perdemos o teu passo, o teu equilíbrio perfeito.