sexta-feira, 17 de agosto de 2018

HISTÓRIAS CALADAS

Vladimir Kush


O sorriso da máscara vazia

Ao acordar, mirou-se no espelho e não se encontrou. Correu pela casa inteira, abriu portas e armários, subiu ao sótão, meteu a cabeça e esticou o pescoço pela janela da clarabóia. Nenhuma pista, o seu rosto havia mesmo desaparecido.

Agora já tinha uma prova para mostrar ao seu senhorio. O rosto havia-lhe sido roubado e a culpa só podia ser da câmara de segurança instalada na entrada principal. Sempre que entrava ou saia evitava os sensores, ainda assim, sentia o vídeo cravado nas costas, como um punhal, a atravessar o corpo de um lado ao outro, passando-lhe bem no cerne da alma.

Mas, nestas condições, não poderia falar com o senhorio olhos nos olhos. Como poderia ser credível mostrando algo que não existe? É inultrapassável o conflito entre o visível e o invisível, entre o concreto e o abstracto, entre o pensamento e a palavra.

Palavra de honra, a captura de imagem de uma pessoa é um processo perigoso. Desde sempre, havia evitado qualquer espécie de objectivas, mesmo assim, não tinha escapatória e bastava pôr um pé na rua, para o mundo inteiro dar conta da sua presença.

Nada tinha a ocultar, é verdade, a sua vida era um livro aberto. No entanto, a ausência de vida de era o único segredo que tinha querido ocultar a todo custo. Por isso, era assustador sentir que havia uma espécie de drone invisível constantemente pousado sobre a sua cabeça, com uma câmara a filmar-lhe todos os gestos e até os próprios pensamentos. Frente ao espelho, ensaiava expressões de naturalidade, mas o seu semblante não se descontrair de forma alguma.

Sim, desejou muitas vezes apagar o rosto para pôr fim àquele desassossego. Sem rosto seria livre, totalmente livre! Porém, um rosto roubado por uma câmara de segurança, fica à solta, não se sabe a que mãos pode ir parar, nem a que outros rostos pode servir.

De pescoço ainda mais esticado para fora da janela do sótão, respirou fundo e lentamente, recuperou do sobressalto. Afinal, era a primeira vez que podia abrir os olhos sem se assustar.

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