domingo, 23 de fevereiro de 2025

ILUSÃO EÓLICA

Despenha-se a rocha desnuda

Acaricia-a a sinuosa mão eólica 

Com um murmurar de pele 

Lábios de vespa amorosa


Angular permanece a pedra

No cúmulo suspenso da boca


domingo, 12 de janeiro de 2025

SEGREDOS AINDA EM FLOR

Anda comigo, põe o céu na mochila

Junto ao pote com doce de frio


Eu levo a vida já cortadinha às fatias

E uma toalha toda feita de chuva

Para estender no abrigo de pássaros


Vamos passear olhando pela janela

Pedir boleia às meias de lã

 

A partir de agora, sabes bem

Os barcos estão bem guardados 

Todos cobertos em papel de rebuçado


Podemos fazer e desfazer

Dançar palavra por palavra 

Ou esquecer


Leva-me, sou nó quase solto

Na ponta do lenço esvoaçado


domingo, 1 de dezembro de 2024

VOLTEI À VIDA

Uma pedra 

No murmurar das pedras


Encravada

Tresloucada

Desalmada 

Danada

Afiada pelos dentes de negros gritos

Dor víbora 

Mordendo o sangre 

Veneno fel queimado as noites

Os dias com longos os meses

A vida parada

A vida fora da vida

Corpo dentro das goelas da morte


No murmurar das pedras

Uma pedra 


Pedra de cálculo errado

Finalmente reduzida a zero 


E o meu poema volto


domingo, 21 de julho de 2024

FUMO-TE

Liliana Ferreira
CRU - corpo (im)perfeito https://www.instagram.com/cru_ocorpoimperfeito/



Quem sou?

Estava mesmo à tua espera. Ainda esta manhã engoli um café à pressa para não perder tempo em viagens inúteis.

Somos os únicos habitantes dos nossos próprios corpos? 

Comprei todos os bilhetes para Las Vegas. Após a nossa chegada, todas as portas serão automaticamente fechadas. Teremos uma cidade inteira por nossa conta. 

Quem me habita?

Ninguém quer partir os braços. Ninguém quer acordar dentro de um avião sem marcha atrás. Ninguém quer ficar sem fôlego enquanto corta as unhas.

Posso pedir um favor?

Não. Concedo-te apenas três posições: vertical, horizontal e escondida.

Já cresci muito além da minha própria vontade.

Falo muito.

Muito, quanto?

Calculando por alto, falo vinte mil músculos por segundos. 

Todos os habitantes de Londres foram criados à nossa imagem e semelhança.

Sabes a que horas exatas podemos fugir destes corpos?

Calculando pela velocidade do vento, que hoje é de noroeste, falta pouco.

Pouco, quanto?

Já comecei a tossir nuvens altas, repara, dás-me volta à cabeça. Quero ficar só! Preciso estar só!

Fumas-me?

Sempre, sem arrependimento, as minhas mãos gritam por ti... 


segunda-feira, 8 de julho de 2024

O RESPIRAR DAS PEDRAS


Tem negócios antigos, a morte

Nua e crua

Entra-nos pelo umbigo

Uma gota por dia

Ou talvez esteja escondida

No rodapé velho do corpo

De onde os barcos são os primeiros a fugir 

Ou a deixar para trás todas as pedras:

Elas que respirem!


Sufocamos com a subidas das marés


segunda-feira, 20 de maio de 2024

IDIOMAS CLANDESTINOS


Não ouço o que pensa a minha cabeça

Tenho uma surdez afinada pelo toque dos dedos

E toco no escuro pendurada pelas patas 

Como os morcegos e as cabras cegas 

Lanço ecos que se repercutem

Lá para o fundo dos meus olhos apagados


Os mosquitos por cordas devolvem-me algum sangue

Um RH de uma linhagem mais azul do que positivo

Sei que só os barcos têm lastro suficiente

Para não tombarem dentro do peito dos céus


Se um sol em contramão 

Abalroar a proa alta da minha renúncia

Outra serei eu, a que só se ouve por dentro

Sem atlas  

Sem corpo

Sem artilharia pensada


Mato o peso ocioso das palavras 

Queimo-as em labaredas altas

Em linhas de fogo e atrevimento


domingo, 14 de abril de 2024

DENÚNCIA ANÓNIMA

Quando as facas beijam o nó do pensamento 

Há dores que espirram e bocejam pelo nariz

Apontando a torto e a direito

Para todos os actos de amor

Perpetrados contra um tipo de solidão ilícita 

Contra os malmequeres de biqueira de aço

Contra as nuvens que se vendem a preço da chuva

Há dores agudas como gritos de morcegos

Amor cego que se ouve à distância

E se vai afastando sempre lentamente

Porque é mais leve morrer do que calar


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A DOENÇA DAS PONTES TORTAS

Quando penso fico às escuras


Nem as mesinhas de cabeceira

Funcionam como antes

Já não há pulsos a vapor

Todas as horas vêm da China

Com árvores para pendurar ao pescoço

E com genuínas pedras de plástico do antigo Egipto

  

Pertenço à idade dos erros

Por isso ferro os dentes

Enquanto continuo a não morder

O engodo que me engorda 


E olho para o caminho que parou

Ali mesmo à minha frente

Só para não me deixar passar

domingo, 14 de janeiro de 2024

OBSTÁCULO MEDITATIVO

Um gato rouba o meu pensamento

E foge com ele na boca.

Atiro-lhe pedras, mas ele não pára

Assusta-se e salta por cima do muro.


E agora? Penso eu sem pensamento…