Eva tinha uma maçã
A madrasta da Bela Adormecida também
Assim como Sir Isaac Newton
E ainda Guilherme Tell
O tal
Não sei bem porquê
Mas tenho a intuição
De que as maçãs eram todas vermelhas
Eva tinha uma maçã
Que lhe suscitou uma ideia
Eva tinha uma maçã
A madrasta da Bela Adormecida também
Assim como Sir Isaac Newton
E ainda Guilherme Tell
O tal
Não sei bem porquê
Mas tenho a intuição
De que as maçãs eram todas vermelhas
Eva tinha uma maçã
Que lhe suscitou uma ideia
Caminhando na perpendicular dos telhados
Sobe
Dez passos acima do mundo
Até se agarrar aos pés das nuvens
Porque os anjos, esses, têm cócegas
E asas pesadas como o sono
Vai limpar a fuligem das chuvas
Alguma coisa tem de ser pura nestes dias
Alguma coisa tem de renascer
E até prova em contrário
Os gatos merecem toda a minha consideração
Despenha-se a rocha desnuda
Acaricia-a a sinuosa mão eólica
Com um murmurar de pele
Lábios de vespa amorosa
Angular permanece a pedra
No cúmulo suspenso da boca
Anda comigo, põe o céu na mochila
Junto ao pote com doce de frio
Eu levo a vida já cortadinha às fatias
E uma toalha toda feita de chuva
Para estender no abrigo de pássaros
Vamos passear olhando pela janela
Pedir boleia às meias de lã
A partir de agora, sabes bem
Os barcos estão bem guardados
Todos cobertos em papel de rebuçado
Podemos fazer e desfazer
Dançar palavra por palavra
Ou esquecer
Leva-me, sou nó quase solto
Na ponta do lenço esvoaçado
Uma pedra
No murmurar das pedras
Encravada
Tresloucada
Desalmada
Danada
Afiada pelos dentes de negros gritos
Dor víbora
Mordendo o sangre
Veneno fel queimado as noites
Os dias longos como meses
A vida parada
A vida fora da vida
Corpo dentro das goelas da morte
No murmurar das pedras
Uma pedra
Pedra de cálculo errado
Finalmente reduzida a zero
E o meu poema voltou
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Liliana Ferreira CRU - corpo (im)perfeito https://www.instagram.com/cru_ocorpoimperfeito/ |
Quem sou?
Estava mesmo à tua espera. Ainda esta manhã engoli um café à pressa para não perder tempo em viagens inúteis.
Somos os únicos habitantes dos nossos próprios corpos?
Comprei todos os bilhetes para Las Vegas. Após a nossa chegada, todas as portas serão automaticamente fechadas. Teremos uma cidade inteira por nossa conta.
Quem me habita?
Ninguém quer partir os braços. Ninguém quer acordar dentro de um avião sem marcha atrás. Ninguém quer ficar sem fôlego enquanto corta as unhas.
Posso pedir um favor?
Não. Concedo-te apenas três posições: vertical, horizontal e escondida.
Já cresci muito além da minha própria vontade.
Falo muito.
Muito, quanto?
Calculando por alto, falo vinte mil músculos por segundos.
Todos os habitantes de Londres foram criados à nossa imagem e semelhança.
Sabes a que horas exatas podemos fugir destes corpos?
Calculando pela velocidade do vento, que hoje é de noroeste, falta pouco.
Pouco, quanto?
Já comecei a tossir nuvens altas, repara, dás-me volta à cabeça. Quero ficar só! Preciso estar só!
Fumas-me?
Sempre, sem arrependimento, as minhas mãos gritam por ti...
Tem negócios antigos, a morte
Nua e crua
Entra-nos pelo umbigo
Uma gota por dia
Ou talvez esteja escondida
No rodapé velho do corpo
De onde os barcos são os primeiros a fugir
Ou a deixar para trás todas as pedras:
Elas que respirem!
Sufocamos com a subidas das marés
Não ouço o que pensa a minha cabeça
Tenho uma surdez afinada pelo toque dos dedos
E toco no escuro pendurada pelas patas
Como os morcegos e as cabras cegas
Lanço ecos que se repercutem
Lá para o fundo dos meus olhos apagados
Os mosquitos por cordas devolvem-me algum sangue
Um RH de uma linhagem mais azul do que positivo
Sei que só os barcos têm lastro suficiente
Para não tombarem dentro do peito dos céus
Se um sol em contramão
Abalroar a proa alta da minha renúncia
Outra serei eu, a que só se ouve por dentro
Sem atlas
Sem corpo
Sem artilharia pensada
Mato o peso ocioso das palavras
Queimo-as em labaredas altas
Em linhas de fogo e atrevimento
Quando as facas beijam o nó do pensamento
Há dores que espirram e bocejam pelo nariz
Apontando a torto e a direito
Para todos os actos de amor
Perpetrados contra um tipo de solidão ilícita
Contra os malmequeres de biqueira de aço
Contra as nuvens que se vendem a preço da chuva
Há dores agudas como gritos de morcegos
Amor cego que se ouve à distância
E se vai afastando sempre lentamente
Porque é mais leve morrer do que calar