domingo, 21 de março de 2010

SEGURANÇA MÁXIMA

Ter a certeza de tantas coisas. O caracol demoraria um dia inteiro a trepar até ao cimo da parede. De meia em meia hora calcula-se a distância percorrida. Não há nada mais extravagante do que a prática do alpinismo. Mas todos os bichos, mesmo os rastejantes, são trepadores por natureza. Não existe uma técnica definida para calcular as distâncias. Existe apenas a certeza de que as sombras crescem à medida que o sol vai baixando no horizonte. As sombras acabam por ficar tão altas como as paredes e as montanhas. O caracol atrasa-se significativamente porque desconhece a fórmula da linha recta. E faz constantes desvios através da textura áspera do cimento. Na trajectória aparente do sol não há qualquer tipo de desvios. O olhar, também, é rectilíneo. O olhar não é aparente. É fixo. Observa com toda a atenção os movimentos ondulantes do caracol. É difícil calcular a distância exacta entre dois pontos. É necessário que os pensamentos formem uma cadeia lógica entre si. É necessário que todos os lugares estejam interligados. Escalar a vida da Terra ao céu. Numa órbita curva dos foguetões. A contagem é decrescente. E infinita.

Não ter a certeza de coisa alguma. As casas dividem-se em duas metades. De um lado, os números pares. Do outro, os números ímpares. Não há espaços livres por onde passar. Todas as paisagens estão atravancadas com fitas métricas e marcos geodésicos. Impossível galopar por cima das horas e dos contratempos. As torres de vigia, embora adormeçam com muita frequência, mantêm-se firmes nos seus postos de comando. Têm luzes que piscam com toda a urgência. Qualquer direcção para onde se tente ir tem de ser anunciada ao pormenor. Nada mais caótico do que as raízes que se multiplicam no interior de uma frente fria. Os ventos levantam-se em terríveis aspirais de fumo e de pó. Esse tráfego subterrâneo de naves espaciais. Nunca se chega a lado nenhum. Há atrasos em todos os embarques. As portas fecham-se. Um caminho cheio de fronteiras. As barreiras automáticas que sobem e descem conforme a apresentação de um registo fotográfico. Identidade perdida. Números primos. Todas as casas ao nível do mar. Paisagem dividida ao meio. Hemisfério diurno.

As ondas. Sim, as ondas. Ter a certeza de algumas coisas. E ignorar completamente tudo o resto. Ignorar os lugares de abrigo. Ir mesmo até à beira das falésias. Sentir os pés molhados. De repente, uma necessidade incontrolável de frutos maduros. As rochas cor de pêssego mesmo ali. E os caranguejos a serem repelidos pelas marés. Caranguejos que se escondem por entre as escarpas mais escorregadias. O tempo move-se numa sequência de retrocessos. É tão difícil acertar os passos com a rotação do mundo. É tão simples dar um salto para fora do muro. O mundo é um muro perfeitamente transponível. Basta acordar. E estar de acordo com os princípios básicos da física.

Nunca cair numa armadilha gramatical. E saber sempre onde estão as entradas de emergência.

4 comentários:

jg disse...

Não pregaste olho, foi?!

privada disse...

tempo move-se numa sequência de retrocessos

bom , excelente, muito bom, primeiro texto longo ke te leio, excelente!

Blimunda disse...

Confesso que aind anão li mas vou ler. Era o que faltava!

Blimunda disse...

Todas as paisagens estão atravancadas com fitas métricas e marcos geodésicos. Impossível galopar por cima das horas e dos contratempos. As torres de vigia, embora adormeçam com muita frequência, mantêm-se firmes nos seus postos de comando...

E isto aplica-se a tantas alminhas, rastejantes ou não.